quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Escola e Democracia (III) – considerações acerca da ‘autonomia’

Duas noções complexas e muito distantes da univocidade  são subordinadas à ação dos Conselhos Gerais, pelo Regime de administração e gestão das escolas públicas (DL 75/2008): liderança e autonomia. Caberia, aqui, uma (muito) breve reflexão sobre ambas; comecemos pela autonomia, pois que a liderança depende, em grande medida, do que dela se entende.
Quando iniciei a minha carreira como professora, nos idos de 80, com a Lei de Bases do Sistema Educativo na ordem do dia (lei que seria aprovada por unanimidade pela Assembleia da República, em 1986), esboçavam-se os seus primeiros desenhos conceptuais, os quais não lograram concretização, engrossando uma retórica autonomista que foi traçando um caminho difuso, e que englobava ideias muito distintas, quer sob o plano ideológico, quer funcional, num verdadeiro ‘saco de gatos’ de todas as cores.
De facto, poucas ou nenhumas têm sido as vozes que ousam, até aos dias de hoje, questionar a bondade intrínseca da autonomia das organizações educativas, embora cada uma a conceba sob luz distinta, ou mesmo contraditória. Não tendo, ainda, havido real vontade política para o confronto com a realidade, que seria a implementação de um modelo (concreto) de autonomia, encontra-se favorecida a ambiguidade.  Foi, desta forma, surgindo uma terminologia avulsa de importação anglo-saxónica, associada à retórica autonomista – Regulamentos Internos, Projetos Educativos, Lideranças, etc. – e enxertada com maior ou menor sucesso na máquina fortemente centralista e burocrática (de estrutura francófona) que foi e é o nosso sistema educativo, nomeadamente a partir da publicação de um incipiente regime jurídico da autonomia, em 1989 (DL 43/89).
A ideal possibilidade de concretização da autonomia conduziu, de facto, à implementação, não da própria, mas de uma política (muito contestada) de Agrupamentos de escolas, apresentada como a racionalização necessária da rede educativa nacional, condição de possibilidade da almejada autonomia. Pelo meio, foram vendo a luz do dia, em aberta contradição entre o que se diz e o que se faz, realidades orgânicas de inspiração (re)centralizadora, como as DRE’s (em vias de extinção) e os CAE (já, felizmente, extintos). Assim se reforçou a centralização do poder central a partir de serviços locais burocráticos, que integraram os boys de algumas famílias políticas e asseguraram estratégias de controlo remoto (Lima, 1999).
A questão crucial é que a ‘autonomia’, seja lá aquilo que for, não é, seguramente, um mero reajustamento técnico-instrumental e orgânico dos ‘braços’ do sistema educativo, à mercê de uma única ‘cabeça’, a administração central; a autonomia efetiva da escola é uma descentralização política que transforma as escolas em  centros de decisão educativa – em termos pedagógicos, curriculares e de gestão de recursos humanos, passando pelos poderes de contratação de pessoal docente.
Ora, o DL 75/2008, ao invés do que expressamente declara, torna a autonomia mais utópica e longínqua. Desde logo porque, reduzindo consideravelmente as estruturas internas de participação democrática (nomeadamente ao nível do Conselho Pedagógico), desbarata importantes recursos de gestão, pois os professores são, como afirma Lima (2011),   

importantes decisores cuja ação exige  considerável grau de autonomia sobre os objetivos, o currículo, a gestão didática, os métodos pedagógicos, a avaliação, etc. A sua autoridade profissional e ético-política exige margens de liberdade (pois a autoridade sem liberdade resulta em autoritarismo) e encontra-se também muito dependente da capacidade de decidir autonomamente, individual e coletivamente, e de assumir as respetivas responsabilidades. Como sustentava Paulo Freire, toda a educação evidencia características de diretividade e politicidade, uma vez que não existe educação neutra e sem objetivos, exigindo por isso dos professores não apenas decisões pedagógico-didáticas, em sentido restrito, mas também opções de política educativa.

Neste novo modelo (DL 75/2008) não encontramos, de facto, uma opção pela ‘autonomia’ como política educativa, mas sim e apenas, por instrumentos de autonomia: a autonomia constitui não um valor abstrato ou um valor absoluto, mas um valor instrumental (Preâmbulo, sublinhado nosso).
Ora, estes instrumentos são colocados, na sua totalidade, sob o controlo do Conselho Geral, o que nos torna mais perturbadoras as (imagináveis) possibilidades de este órgão poder corromper a independência da sua missão, seja por via de simples inércia, de compadrios corporativos ou de domínio político-partidário externo.

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Platão e a Democracia (aos meus jovens alunos de 10º ano)

A democracia, regime político inventado pelos gregos, na antiguidade, está associada ao período áureo de riqueza e poder de Atenas (séc. V a C): governo do ‘demo’, que não é propriamente o ‘povo’ no conceito alargado que temos hoje; trata-se de cidadãos livres (não escravos), de maior idade, naturais de Atenas (não estrangeiros nem filhos de estrangeiros) e de sexo masculino (não mulheres). Ainda faltavam muitos séculos para se aflorar a noção de direitos humanos universais, mas construiu-se, com inegável sucesso, uma experiência política inovadora, uma espécie de ‘engenharia social’ que ultrapassou as conceções que reproduziam as brutalidades tribais, as tiranias militares e outras experiências mais próximas da nossa animalidade. Enfim: cargos públicos e governo da ‘polis’(cidade) acessível ao cidadão, independentemente da fortuna pessoal e em concordância com o seu mérito.
A democracia constrói, assim, uma nova fonte de poder, até então desconhecida e mais associada a videntes e poetas ambulantes: o poder da palavra, do ‘logos’, organização lógica do discurso, que impõe, ao caos da experiência, a construção racional.
Na realidade, esta descoberta avassaladora que associa, na política, retórica (e não, necessariamente, verdade) e poder, constrói, para o bem e para o mal, a essência da democracia enquanto regime político. Transporta, de uma forma não menos essencial, uma imagem do homem muito próxima da que os sofistas fizeram triunfar na Ágora e na Assembleia Popular ateniense – o homem, medida de todas as coisas, educado, cosmopolita, persuasivo e manipulador.
É precisamente esta imagem de homem que Sócrates, o Moscardo de Atenas, se preocupará em ridicularizar, através do que a história da filosofia designará de ‘ironia’ socrática; quer dizer que o Moscardo ‘picava’ os poderosos e que lhes sugeria um ‘conhece-te a ti mesmo’ humilhante das capacidades de quem se arvorava em verdadeiro ‘conhecedor’.
Ora, quem se mete com o poder – e que outra coisa será a política? – ou possui influência que o proteja (que é um poder informal, mas muitíssimo eficaz, que nem sempre pode identificar claramente os seus circuitos) ou tem vocação para mártir.
E assim, a história da filosofia ocidental inicia-se, comme il faut, com um martírio (a morte de Sócrates, condenado a beber a cicuta) e com uma tocante história de amor (a lealdade de Platão, ao seu mestre injustiçado).
Platão gastará o resto da sua vida a impor a tradição literária da filosofia, a partir de duas ideias-chave: a reabilitação de Sócrates, o ‘filósofo’, ou melhor, a própria Filosofia, a partir de então; e uma visceral oposição ao regime democrático, último responsável, em seu entender, pelo assassinato daquele que foi «o mais excelente, e o mais sensato e o mais justo» dos atenienses (Platão, Fédon). Este segundo vetor domina uma das suas obras da maturidade, Politeia (traduzido como A República), na qual valoriza o papel da educação na formação do homem e associa o poder político ao conhecimento (à ascese intelectual-filosófica), como forma de fugir ao governo do vulgo, da ignorância, em que, segundo ele, a democracia se transformou. Uma cidade justa será, pois, aquela cujo ‘rei’ é ‘filósofo’.
Na realidade, com o declínio do poderio de Atenas (que acaba por ser vencida pelo exército espartano) após a Guerra do Peloponeso (431-404 a.C.) e um surto de peste que dizimou um terço da sua população, a democracia é abandonada e mesmo amaldiçoada, como regime político, durante muitos séculos.
É ao Iluminismo e ao liberalismo, durante os séculos XVIII e XIX, que se deve o ressurgir da ideia (positiva) de Democracia.

sábado, 24 de setembro de 2011

Em torno da ideia de «decadência» (I)

Em 1871 Antero de Quental, poeta e filósofo considerava que a decadência dos povos peninsulares (leia-se ibéricos) era uma evidência incontestável.
Depois de um périplo em torno das grandezas passadas, identifica a crescente decadência dos séculos XVII, XVIII e XIX: um quadro de abatimento e insignificância, tanto mais sensível quanto contrasta dolorosamente com a grandeza, a importância e a originalidade do papel que desempenhámos (…).
São três as causas do nosso colapso moral (que arrasta todos os outos):

Quais as causas dessa decadência, tão visível, tão universal, e geralmente tão pouco explicada? Examinemos os fenómenos que se deram na Península durante o decurso do século XVI, período de transição entre a Idade Média e os tempos modernos, e em que aparecem os gérmenes, bons e maus, que mais tarde, desenvolvendo-se nas sociedades modernas, deram a cada qual o seu verdadeiro carácter. (…)
Ora esses fenómenos capitais são três, e de três espécies: um moral, outro político, outro económico. O primeiro é a transformação do catolicismo, pelo Concílio de Trento. O segundo, o estabelecimento do absolutismo, pela ruína das liberdades locais. O terceiro, o desenvolvimento das conquistas longínquas. Estes fenómenos assim agrupados, compreendendo os três grandes aspectos da vida social, o pensamento, a política e o trabalho, indicam-nos claramente que uma profunda e universal revolução se operou, durante o século XVI, nas sociedades peninsulares. Essa revolução foi funesta, funestíssima. Se fosse necessária uma contraprova, bastava considerarmos um facto contemporâneo muito simples: esses três fenómenos eram exactamente o oposto dos três factos capitais, que se davam nas nações que lá fora cresciam, se moralizavam, se faziam inteligentes, ricas, poderosas, e tomavam a dianteira da civilização. Aqueles três factos civilizadores foram a liberdade moral, conquistada pela Reforma ou pela filosofia: a elevação da classe média, instrumento do progresso nas sociedades modernas, e directora dos reis, até ao dia em que os destronou: a indústria, finalmente, verdadeiro fundamento do mundo actual, que veio dar às nações uma concepção nova do Direito, substituindo o trabalho à força, e o comércio à guerra de conquista.
(…) Assim, enquanto as outras nações subiam, nós baixávamos. Subiam elas pelas virtudes modernas; nós descíamos pelos vícios antigos, concentrados, levados ao sumo grau de desenvolvimento e aplicação. (…)
Causas da Decadência dos Povos Peninsulares nos últimos três séculos, discurso proferido por Antero de Quental, numa sala do Casino Lisbonense, em Lisboa, no dia 27 de Maio de 1871

Escola e Democracia (II)

O Conselho Geral das escolas públicas (e agrupamentos de escolas) apresenta um desenho inovador, se comparado com o órgão que o precedeu, no anterior quadro legislativo, a Assembleia de Escola, onde, não obstante estarem representados diferentes membros da comunidade, os professores detinham, só por si, uma maioria absoluta de representantes. O DL 75/2008 justifica tal opção como forma de garantir condições de participação a todos os interessados, [pelo que] nenhum dos corpos ou grupos representados tem, por si mesmo, a maioria dos lugares (Preâmbulo).
Deixemos, por hora, a contextualização dos restantes corpos de representantes e foquemo-nos nos professores.
Os representantes dos professores são eleitos mediante a apresentação de listas; possuem a legitimidade da representação democrática num órgão em que preenchem, necessariamente, um número percentual inferior a 50%, conjuntamente com os representantes do pessoal não docente (podem, no máximo, chegar a 8 elementos, em 21).
A representatividade democrática docente não se reproduz nos Conselhos Pedagógicos (CP), que são compostos quase exclusivamente (e, nalgumas escolas, exclusivamente) por elementos nomeados pelo Diretor/a.  
A voz dos professores mal penetra os CP. Os nomeados, como a sua essência indica são, na realidade, ‘instrumentos’; e se se tornarem incómodos, poderão ser exonerados pelo Diretor/a, como a lei prevê.
E os Conselhos Gerais? Será que os docentes que os integram, eleitos entre pares, têm consciência da sua função como último reduto da democracia interna? Levam às reuniões as legítimas aspirações, receios, propostas… dos colegas que representam? Ouvem-nos? Divulgam o teor dos assuntos tratados nas reuniões? Mantêm independência em relação à direção executiva?
É que, se assim não for – o que é comum em muitos estabelecimentos de ensino – não resta um laivo de organização democrática nas escolas, elas tornam-se espaços autoritários, tiranias, prisões psíquicas. E a acontecer tal, a responsabilidade é dos próprios professores.
Gostaria de perguntar aos colegas docentes:
Como vai o Conselho Geral da tua escola? Como trabalha?
Quantos teriam resposta?

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Escola e Democracia (I)

O novo Regime de Administração e Gestão das Escolas Públicas (DL nº 75/2008, de 22/4) promove alterações profundas no paradigma de administração escolar, em vigor depois de 1974 - considerado o regime de gestão democrática das escolas. Desde logo, altera o modelo de legitimação do poder executivo, que deixa de ser de natureza colegial (os conselhos diretivos e executivos) e deixa de ter uma forte legitimidade eleitoral (Afonso, 2009), do tipo corporativo, como até então, dado que os anteriores presidentes (do conselhos directivos ou executivos) eram eleitos diretamente pelos colegas docentes da sua escola. Trata-se de uma viragem, que troca a concepção democrática pela conceção gestionária de inspiração gerencialista e tecnocrática.O novo modelo de administração (ver Preâmbulo do DL) visa, explicitamente, três objectivos estratégicos: primeiro, reforçar a participação das famílias e promover a abertura das escolas ao exterior e a sua integração nas comunidades locais; segundo, reforçar as lideranças das escolas; terceiro, reforçar a autonomia. Associa-se (ou subordina-se?) a liderança e a autonomia à abertura da escola ao controlo social externo.Estes objetivos confluem na introdução do controlo social nas escolas, numa lógica de prestação de contas (accountability) face às famílias e comunidades locais. O instrumento fundamental deste controlo social é o Conselho Geral a quem os Diretores têm de prestar contas. Pelo menos, teoricamente.
Por seu lado, os Diretores dominam as práticas gestionárias e pedagógicas internas, cabendo-lhes um centralismo quase absoluto: nomeiam as chefias intermédias (os Coordenadores de Departamento, obrigatoriamente) e controlam todos os procedimentos, anulando completamente a tradição de democracia interna em vigor até 2008; na realidade, os coordenadores deixaram de ser os representantes dos professores, legitimados pelo seu voto: os 'primus inter pares'. São. agora, os representantes do Diretor junto dos professores, numa lógica inversa que alterou completamente o clima social das escolas.
Que vantagens e desvantagens oferece esta inversão?

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

A Europa dos cafés

« A Europa é feita de cafetarias, de cafés. Estes vão da cafetaria preferida de Pessoa, em Lisboa, aos cafés de Odessa frequentados pelos gangsters de Isaac Babel. Vao dos cafés de Copenhaga, onde Kierkegaard passava nos seus passeios concentrados, aos balcões de Palermo. Não há cafés antigos ou definidores em Moscovo, que já é um subúrbio da Ásia. Poucos em Inglaterra, após um breve período em que estiveram na moda, no século XVIII. Nenhuns na América do Norte, para lá do posto avançado galicano de Nova Orleães. Desenhe-se o mapa das cafetarias e obter-se-á um dos marcadores essenciais da 'ideia de Europa'.
O café é um local de entrevistas e conspirações, de debates intelectuais e mexericos, para o flâneur e o poeta ou metafísico debruçado sobre o bloco de apontamentos. Aberto a todos, é todavia um clube, uma franco-maçonaria de reconhecimento político ou artístico-literário e presença pragmática. Uma chávena de café, um copo de vinho, um chá com rum assegura um local onde trabalhar, sonhar, jogar xadrez ou simplesmente permanecer aquecido durantetodo o dia. É o clube dos espirituosos e a poste-restante dos sem-abrigo. Na Milão de Stendhal, na Venezade Casanova, na Paris de Baudelaire, o café albergava o que existia de oposição política, de liberalismo clandestino. Três cafés principais da Viena imperial e entre as guerras forneceram a agora, o locus da eloquência e da rivalidade, a escolas adversárias de estética e economia política, de psicanálise e filosofia. Quem desejasse conhecer Freud ou Karl Kraus, Musil ou Carnap, sabia precisamente em que café procurar, a que Stammtish tomar lugar.»
George Steiner, A Ideia de Europa

O patriotismo lúcido de Junqueiro

Sobre os portugueses:
«Um povo imbecilizado e resignado, humilde e macambúzio, fatalista e sonâmbulo, burro de carga, besta de nora, aguentando pauladas, sacos de vergonhas, feixes de misérias, sem uma rebelião, um mostrar de dentes, a energia dum coice, pois que nem já com as orelhas é capaz de sacudir as moscas...»Guerra Junqueiro, «Pátria», 1896