quarta-feira, 28 de março de 2012

Para pensar os Agrupamentos de Escolas (1)

A versão acordada, entre o MEC e os sindicatos, para alteração do Regime de Autonomia, Administração e Gestão das Escolas - RAAG (DL 75/2008) apresenta uma apertada agenda de generalização dos Agrupamentos de Escolas (AE), como padrão da reorganização e consolidação da rede escolar: até final do ano de 2012/13. O que quer dizer que os ‘mega-agrupamentos’ que não ‘nascerem’ no final do ano letivo em decurso, ‘nascerão’ no final do próximo. Excluem-se da política de agrupamento administrativo forçado: a) os estabelecimentos integrados em TEIP; b) as escolas profissionais públicas; c) as escolas de ensino artístico; d) as que prestam serviço educativo permanente a estabelecimentos prisionais e c) as escolas com contrato de autonomia.
Adianto, desde já, que tenho dificuldades com os discursos de pânico e contestação sistemática, tantas vezes acrítica e mal fundamentada. Não parto do princípio de que toda a mudança é desastrosa, embora reconheça que o plano ideológico em que se movem as políticas educativas nacionais (por integração nas europeias, em grande medida), não é nada tranquilizador. Será o caso dos AE?
Na realidade, a política de AE não pode ser compreendida isoladamente. A lógica da territorialização e das associações/agrupamentos de escolas traça um caminho conceptual e de ideologia educativa indissociável de outros elementos cruciais desenvolvidos nos dois últimos decénios, como sejam a descentralização e desconcentração das políticas, a devolução das competências ao poder local, em matéria de planeamento e gestão escolar concelhia e, enfim e de modo aglutinador, a defesa da autonomia das escolas (ainda que nem sempre no mesmo sentido e com a clara definição do conceito, como vimos aqui).
Os AE  foram implementados, na rede escolar pública, a partir da publicação do Despacho Normativo nº 27/97, de 2 de junho; previa-se, então,  diversas modalidades de AE, mas as dinâmicas sociais rapidamente os categorizaram em duas: os agrupamentos horizontais (com estabelecimentos que lecionam o mesmo nível de ensino) e os agrupamentos verticais (com estabelecimentos de níveis de ensino diversificados). Brevemente se estabelece o paradigma da verticalização como o mais desejável e adequado aos objetivos de eficácia do sistema de ensino. Isto, ao mesmo tempo que se vai consolidando uma retórica de modernização do sistema educativo e de transferência do paradigma do ‘Estado educador’ para o ‘Estado regulador’, que se teria iniciado a partir da reforma educativa dos anos 80/90.
O que surge nesta retórica de valorização dos AE?
- a 'dignificação' das escolas como centros da política educativa, associada à descentralização e desburocratização do sistema;
- a valorização das dinâmicas regionais e locais, concretizando-se em novas opções organizativas, caracterizadas pela proximidade à realidade social em que se inserem os estabelecimentos escolares, que se constituiriam como condição de emergência de projetos educativos diferenciados e implementados localmente.
Desta forma, os AE surgiriam das dinâmicas locais e das necessidades concretas das comunidades educativas. Sabemos, porém, que não foi o que maioritariamente se passou: a partir de 1998 (com a publicação de um novo RAAG, pelo DL nº 115-A/98), os processos de constituição de AE foram administrativamente acelerados e geridos a partir das DRE’s e CAE’s; desta forma, as iniciativas locais e a importância dos projetos educativos comuns foram claramente ultrapassadas pelas lógicas centralistas e burocráticas (que se queriam combater!!) e esquecidas.
Até que, a publicação da Resolução do Conselho de Ministros nº 44/2010, um dos ícones da política educativa do governo de maioria relativa, de José Sócrates, tornou as escolas secundárias (que se mantinham, maioritariamente, não agrupadas) alvo da política de ‘agrupamento’ (agora, ‘mega’-agrupamento).
Licínio Lima escrevia já em 2004, o que ainda hoje podemos repetir:
Acontece que agrupar escolas isoladas, ou outras, pode ser uma boa medida, embora muito dependente dos processos seguidos, dos protagonistas envolvidos, das vontades e das racionalidades em presença. Agrupar todas as escolas obrigatoriamente através de uma lógica imposta de ‘verticalização’ […] é insistir numa lógica de dominação e de imposição hierárquica de todo incompatível com os objetivos de democratização da educação e com a (retórica) da autonomia da escola. (O Agrupamento de Escolas como novo escalão da administração desconcentrada. Revista Portuguesa de Educação)

(A continuar…)

segunda-feira, 26 de março de 2012

« Histórias difíceis de contar »

No passado sábado, dia 24, decorreu o lançamento do livro da minha colega e amiga Sandra Nóbrega. A mim, coube-me a sua apresentação. Com o consentimento da autora, aqui deixo a divulgação da obra e a transcrição (quase fiel) da minha intervenção.


Foi com alegria que recebi, da parte da autora, Sandra Nóbrega, o convite para estar aqui hoje a apresentar, e cito a própria, 'a autora e o livro'.
O facto de ser um tarefa grata não significa, porém, que seja fácil. E não é fácil, em nenhuma das suas dimensões.
Não sei se será mais difícil apresentar a autora se o livro, «Histórias difíceis de contar», mas decidi trocar a ordem dos fatores e começar pelo LIVRO (que, provavelmente, nos facilitará a apresentação da autora).

Numa prosa fluida e despretensiosa, que dispensa artefactos e complicações estilísticas, optando por deixar passar a mensagem, portanto, numa prosa que se transforma no espelho do quotidiano vivido – são-nos oferecidas vinte histórias de vida, ‘difíceis’ de contar.
Difíceis, desde logo, porque penetram a face oculta do quotidiano, aquela que, em geral, por fragilidade e comodismo, optamos por não ‘ver’ e por ‘silenciar’. Quando este livro opta por ‘trazer à tona’ o que se esconde e habita as margens da vida, é a nós todos, aos leitores e pessoas comuns, que interpela de forma irresistível:
Estas histórias não se passam no terceiro mundo nem noutro país. São nossas! São histórias que estão mais perto de si do que imagina, muitas vezes, à distância de um passo, de um olhar perdido ou de um rosto cabisbaixo(pág 14).

Trata-se, portanto, de um livro sobre a fragilidade humana:
em primeiro lugar, a dos pequenos ‘heróis’, sobreviventes do abandono, da miséria, do abuso e da crueldade social. Sandra Nóbrega põe a nú, a partir do enfoque nos mais frágeis, nos mais jovens e carentes de proteção, o fenómeno do ciclo reprodutivo da pobreza e da sua implacável herança geracional – uma cadeia de causas e efeitos que envolve as gerações precedentes. Põe a nú as dimensões polifacetadas da pobreza: que não é só falta de ‘dinheiro’, nem mesmo de bens básicos, de higiene… e tantos outros; é também e de forma implacável, a pobreza social e moral. E a nú, finalmente, interpelando-nos a nós, leitores, de forma irredutível: a nossa fragilidade de espetadores mudos e, tantas vezes, indiferentes.

Vem a propósito recordar, neste mês de abril, vinte e quatro anos passados sobre a data em que foi assassinado, a frase de Martin Luther King, que numa antinomia quiçá demasiado simplificada (entre os bons e os maus), interpela a nossa consciência muda, revelando-nos as cumplicidades:
O que me preocupa não é o grito dos maus. É o silêncio dos bons.”
Martin Luther King

Desta forma, Sandra Nóbrega faz desfilar, perante o leitor, a incómoda galeria do mundo real: da adolescente que se prostitui ao pequenos irmãos sujeitos a grave negligência e abuso, por parte da própria mãe, o espelho da pobreza multifacetada.
As histórias são narradas a partir de uma ideia central e autojustificada: os ‘direitos das crianças e dos jovens’ e da responsabilidade social partilhada que este conceito encerra e exige.
Porém, percorrendo estas histórias e reforçando-lhes a unidade temática, uma personagem-narradora faz o contraponto: a professora. É assumindo a subjetividade da narradora como ‘filtro’, que as histórias são contadas: as histórias que a professora viveu e testemunhou diretamente e, outras, que lhe foram contadas por colegas de profissão. É a professora que vê e não cala, que assume a sua profissão, não apenas como ‘funcionária’, mas, por assim dizer, como ‘missionária’ – responsável de uma missão junto dos jovens. Este sentido de missão social e moral descreve a diferença entre o professor que somente ‘ensina a matéria’ (o ‘instrutor’, diria eu) e o que educa e forma – o verdadeiro educador. Neste sentido, o livro de Sandra Nóbrega é, ao mesmo tempo de um apelo à consciencialização da missão social e moral da ‘docência’, uma homenagem a tantos professores-educadores que têm feito a diferença na vida de crianças e jovens e particularmente, quando a história destas crianças e jovens não se resume ao percurso dito ‘normal’, mas é, em sentido próprio, uma história 'difícil de contar’.

E porque falamos na missão social dos professores, e porque a dignidade desta missão jamais é isenta de responsabilidade, cabe aos professores, de forma privilegiada e por força da sua profissão, testemunhar, cabe-lhes denunciar:
Denunciar é um dever que todos temos em prol da proteção das nossas crianças e jovens!
Porque o tempo das nossas crianças e jovens é Agora, é urgente ver, ouvir e não calar! (Pag 14)

Para concluirmos esta análise, não poderei deixar de lado um pequeno apontamento sobre a estrutura metodológica e estilística do livro.
As narrativas constituem, hoje, mais do que um estilo literário. Hoje fala-se, como metodologia validada, em termos de investigação no âmbito das ciências sociais e humanas, em metodologia narrativa. As ‘histórias de vida’ são uma modalidade particular da investigação narrativa. Nas vinte histórias de vida, que compõem o livro de Sandra Nóbrega, encontramos as categorias essenciais desta metodologia narrativa, tais como:
- validar a subjetividade como instrumento de compreensão dos fenómenos sociais (ou socio-morais);
- compreender os fenómenos enquanto ação (em ambos os casos, ultrapassando os paradigmas quantitativos e positivistas, que apenas captam o fenómeno enquanto resultado, negligenciando-o como processo);
- evidenciar a categoria da temporalidade como revelador de sentido(s);
- estruturar a narrativa a partir do enredo ou viragem da ação;
- culminar numa reflexão de tendência generalizante: um‘coda’ ou moral da ‘história’, a lição que dela é retirada pelo sujeito intemporal, que encarna os valores que se situam 'para além' do campo restrito da ação, mas que decorrem dela.
Na realidada vários autores, oriundos da sociologia, da literatura e da filosofia da linguagem, como é o caso de Polkinghorne e Paul Ricouer, evidenciaram o caráter cognitivo da narrativa, como sendo o modo ‘natural’ como todos os sujeitos  atribuibuem sentido à diversidade das suas experiências, numa espécie de ‘escrita’ psico-lógica, em tudo semelhante à ficção literária: enredo, ação, sequencialidade .  
Acerca de «Histórias difíceis de contar» não me alongarei mais, esperando que os leitores me perdoem por tudo quanto mais deveria ter assinalado, mas que deixo à descoberta da vossa leitura.
Sobre Sandra Nóbrega, a autora, há a dizer tudo quanto se descobriu – no verdadeiro sentido de desvendar – na obra.
Mas há algo mais. Que se prende, ainda e também, com o binómio o silêncio e a voz, que orientou a nossa exposição do livro.
Sandra é a voz. Caracteriza-se, como bem sabem aqueles que com ela privam, por ser a voz, a palavra. Nestes tempos que são também de crise de voz: uma crise que começou por ser financeira e logo se tornou económica, depois política e de cidadania; uma crise de participação, de envolvimento e de compromisso coletivo. Hoje, somos convidados, em todas as múltiplas formas que o poder exibe - esse Leviatã, para evocarmos a monstruosa imagem usada por Thomas Hobbes, no século XVII - ao individualismo e ao silêncio, a tratar cada um da sua vidinha e nisso se esgotar.
Na generalidade, aceitamos. E no silêncio cúmplice nos esgotamos.
Sandra não aceita, não hipoteca o seu direito à voz. Tão incómodo!
Sandra é o discurso que se assume. Que denuncia a injustiça.
Que enfrenta. Olhos nos olhos.
Que não cede à esmagadora tentação de fingir que não vê (tão eficaz para não vermos, de facto).
Que não é indiferente.
Que procura a luz. Pôr na luz. Que procura a lucidez em vez do individualismo penumbrento.
Que incomoda. Que prefere o turbilhão às águas paradas, mortas, podres.
Que ensina. Que mostra o caminho, a mão, a orientação.
Que por vezes não cede.
Que prefere a lealdade, a honra e os valores. Que testemunha e não cala.
Alguém que enriquece vidas. As ‘difíceis’ e as menos difíceis de contar.

domingo, 25 de março de 2012

Antonio Tabucchi (1943-2012)


« ... o que eu pensei efectivamente foi que tudo era na realidade um pequeno equívoco sem solução que a vida levava consigo, de agora em diante os papéis estavam distribuídos e era impossível deixar de os desempenhar; (...) o simples facto de os ver representar os seus papéis era também um papel, e nisso consistia a minha culpa; fazer o meu papel porque a nada nos podemos furtar e todos somos culpados de qualquer coisa, cada um à sua maneira. E então invadiu-me um grande cansaço e uma espécie de vergonha, e ao mesmo tempo assaltou-me uma ideia que não fui capaz de decifrar, qualquer coisa a que poderia chamar o desejo de Simplificação. De repente, seguindo um novelo que se desenrolava a uma velocidade vertiginosa, compreendi que estávamos todos ali por causa de uma coisa que se chama Complicação, e que ao longo dos séculos, dos milénios, de milhões de anos, tem vindo a acumular, uns por cima dos outros, circuitos cada vez mais complexos, até formar aquilo que hoje somos e aquilo que vivemos. E senti a nostalgia da Simplificação (...)»
                                                                                                
                                                                                  Antonio Tabucchi (1985) Pequenos Equívocos sem Importância

terça-feira, 20 de março de 2012

O quotidiano como enigma filosófico

Quando os meus jovens alunos de Filosofia, tateando a vertigem do pensar, julgam encontrar objeto somente na transcendência, tomada como um 'para além' espiritual e algo místico, costumo desiludi-los, advertindo-os que a trancendência habita este mundo, que nós é que temos de a saber desvendar, que tudo o que é familiar também é estranho, que o pensamento é 'estranheza'. Claro que tanbém denuncio, assim, a minha antipatia pela Filosofia vista como mero jogo de erudição, tantas vezes bem menos erudita do que quer parecer, e ao serviço de vaidades pessoais que assim se julgam mitigadas.
Foi portanto, uma boa surpresa, o livro recentemente publicado, de Porfírio Silva, que se apresenta (o livro) como 'um divertimento político-filosófico acerca da profundidade do quotidiano'. Inicio, neste momento, a sua leitura, mas deixo aqui, por antecipação, um aliciante excerto que roubei (autorizadamente) do blog  do seu autor (Machina Speculatrix):

«119. A nossa mente anda pelo mundo, essa é a questão. Como diz Andy Clark, é preciso voltar a ligar cérebro, corpo e mundo. Dizemos nós: ligar matéria e pensamento na nossa história de pertença comum ao mundo.
Uma pessoa entra numa sala às escuras e quer ligar as luzes: o que tem a fazer é accionar o interruptor apropriado, que normalmente está colocado junto à entrada dessa sala. Como é que mudar a posição daquela lingueta naquela peça faz com que as luzes se acendam? Há toda uma preparação daquele recanto do mundo físico que é aquela sala, visando que aquele gesto tenha tal resultado. O circuito eléctrico que ali foi instalado permite que a corrente de electrões, ao passar pelo filamento de metal fino que está dentro da lâmpada, excite esse filamento de tal modo que é emitida a radiação intensa a que chamamos luz. O interruptor faz o que o seu nome indica: interrompe a corrente eléctrica, interrompe a excitação dos electrões e a libertação de fotões, evitando que “se faça luz”. Quando “ligamos a luz” no interruptor fazemos com que o interruptor deixe de interromper, fechamos (completamos) de novo o circuito e deixamos que aconteça o que estava preparado para que acontecesse. Essa preparação do mundo físico pode, em determinadas situações, colocar o interruptor a grande distância da lâmpada ou das lâmpadas que serão acesas.
É preciso notar o seguinte: modificar a posição da lingueta do interruptor, em si mesmo, não acende luz nenhuma. Nem apaga, claro. Parece estranho que se diga isto? Então, experimente ir a uma loja de material eléctrico, pegue num dos interruptores que estão lá à venda, accione-o: verá que não se acende luz nenhuma. Mesmo que esse interruptor seja igualzinho àquele com que acende as luzes da sala em sua casa. Isto quer dizer que accionar o interruptor, só por si, não acende as luzes. Accionar o interruptor só acende a luz se o interruptor estiver inserido
numa certa organização de uma parte específica do mundo físico. Uma forma de falar do que aqui se passa é dizer que temos uma acção veicular e uma supra-acção. A supra-acção, aquilo que se pretende realmente que aconteça no mundo como resultado do que fazemos, é acender as luzes. A acção veicular, o que concretamente temos de fazer para que aconteça o que pretendemos, é mudar a posição da lingueta no interruptor. O que faz com que aquela acção veicule a supra-acção intencionada é uma certa organização do mundo físico externo naquele contexto (o funcionamento do circuito eléctrico). Note-se que não é preciso ser electricista, nem saber nada de electricidade, muito menos ter sido o técnico responsável por aquela instalação, para ser capaz de acender as luzes de acordo com todo este esquema – uma vez que ele tenha sido instalado por quem sabe, em mais uma manifestação da divisão social do trabalho.

120. Pensemos agora numa situação muito diferente. Um casamento. Mais precisamente, o casamento do Pedro e da Maria. Além dos noivos, estão presentes alguns amigos e certas pessoas que têm certos papéis específicos a desempenhar neste acto: testemunhas e (vamos supor que é um casamento católico) um padre, que (diz-se) é quem vai fazer o casamento. Como é que o padre casa o Pedro e a Maria? O padre diz certas palavras, previstas em certas disposições da igreja; pede aos noivos que digam certas palavras, também previstas nas fórmulas canónicas; executa um determinado conjunto de movimentos corporais (frequentemente combinados com palavras, como no caso daquilo a que se chama “bênção”), pedindo aos noivos que executem outros determinados movimentos; e depois declara que, pronto, estão casados. Aquele conjunto de movimentos e palavras, naquele formato, valeu, para aquelas pessoas ali presentes e para muitas outras que disso serão informadas daí para o futuro, como o ofício de casar Pedro e Maria.
Aquele conjunto de movimentos e palavras constitui a acção veicular que serve a supra-acção, que é o casamento daqueles noivos. Nesse sentido, aquelas palavras e gestos não casam ninguém: mexer no interruptor, só por si, não acende a luz. Aquele conjunto de movimentos, realizado por outras pessoas e noutras circunstâncias, poderia ser apenas uma encenação. Suponhamos que se tratava de um casamento muito importante, de um príncipe e uma princesa, por exemplo, e que a pressão para que tudo resultasse espectacular no momento da verdade, frente às câmaras, impunha um ensaio geral. No ensaio geral tudo é feito como no acto solene propriamente dito, salvo algumas interrupções para corrigir movimentos e palavras. Mesmo fazendo no ensaio geral tudo como será feito na verdadeira cerimónia, envolvendo os mesmos actores principais, o ensaio geral não é o casamento, das mesmas palavras e gestos não resultam os mesmos efeitos institucionais. Curiosamente, os ensaios gerais de certos acontecimentos sem este carácter institucional podem ser vistos de outra maneira: o ensaio geral de uma ópera, na véspera da estreia, não é a estreia – mas é a ópera. Pode ouvir-se a mesma música e o mesmo canto, sem tirar nem por, desta vez sem interrupções, sequer. Não é a estreia, porque “ser a estreia” é um efeito institucional; mas é a ópera, em todo o seu esplendor.
Temos, então, que aquele conjunto de gestos e palavras do casamento, realizado fora das circunstâncias apropriadas, pode ser uma mera encenação. Porque aquelas palavras e gestos não casam ninguém: mexer no interruptor, só por si, não acende a luz. Porque aquele conjunto de movimentos e palavras constitui apenas a acção veicular que serve a supra-acção, aquela que é verdadeiramente intencionada, que é o casamento daqueles noivos. Essa mera encenação pode acontecer numa cena de teatro onde se represente um casamento. No filme, de Manoel de Oliveira, “O Princípio da Incerteza” (2002), há uma cena de casamento. Um casamento católico. Naturalmente, na cena há um actor que representa o papel de um padre, o oficiante nessa cerimónia, e outros que representam os noivos, e outros ainda a assistência. Ninguém fica mais ou menos casado por ter participado como actor nessa cena. Contudo, um dos actores que representam essa cena é um padre. Mais precisamente, quem faz de padre nessa cena é realmente um padre, na vida real, fora do filme. Essa pessoa, que aí faz de padre, poderia casar aquelas pessoas noutras circunstâncias – mas do que se representa num filme não decorrem consequências desse tipo. Tudo o que se passou no filme é diferente de um verdadeiro casamento. A diferença não está em nenhum dos movimentos, em nenhuma das palavras, nem sequer nos poderes das pessoas envolvidas. A diferença está na preparação do mundo institucional que enquadra aquela acção. Daquele conjunto de pessoas no filme não se podia dizer que contassem com os mesmos aspectos externos que contavam os que participavam no casamento de Pedro e Maria. A diferença é o contexto institucional. A diferença é institucional.
Pode parecer que para fazer aquele casamento (dados os agentes que serão “objecto” do casamento) basta o padre, uma pessoa desempenhando um certo papel. O casamento parece um exercício de uma certa interacção directa entre certas pessoas, em que a supra-acção é realizada por uma única pessoa. Dá a ideia que as acções institucionais são acções envolvendo múltiplos agentes numa certa coordenação, mas em que a acção propriamente dita é realizada por um único agente. Esta é uma aparência enganadora. O paralelo com a inversão do interruptor para acender a luz esclarece o erro: o circuito eléctrico não está no local por acaso, nem pela ordem natural do mundo. Está no local porque outros agentes previamente prepararam o ambiente. Eles foram capazes de preparar assim o ambiente por antes terem aprendido como funcionam os circuitos eléctricos, e foi possível ensinar-lhes isso porque outros antes tinham descoberto como funciona a electricidade… e assim por diante. Pensar que basta accionar interruptores para fazer luz – é um exemplo da ilusão da interacção directa.

[...]

126. Mas este mundo onde podem acontecer coisas, em resultado das nossas acções, que de modo algum esperávamos que tivessem lugar (como no caso do caminho na relva), e onde podemos até certo ponto impor uma realidade institucional à realidade natural (como no caso da hora legal), é também um mundo que, noutras ocasiões, nos resiste. Um mundo onde não é fácil mudar as coisas. Atentemos neste caso. Na madrugada de 10 de Agosto de 2009, um grupo de membros do blogue 31 da Armada empreendeu uma “restauração da monarquia” em Portugal. O texto publicado nesse blogue pelas 15:00 horas desse dia rezava assim: “Daqui posto de comando do Movimento do 31 da Armada. Durante a madrugada de ontem, e apesar da forte vigilância policial, elementos do 31 da Armada (Darth Vaders) subiram heroicamente até à varanda dos Paços do Concelho [de Lisboa] e hastearam a bandeira azul e branca. Há 99 anos atrás, no dia 5 de Outubro, um punhado de homens, contra a vontade da maioria dos Portugueses, tinha feito a mesmíssima coisa proclamando assim a república. O resto do país ficou a saber por telegrama. Hoje, aproveitando as férias de verão e numa inédita acção de guerrilha ideológica, foi restaurada a legitimidade Monárquica. Podem permanecer calmos nas vossas casas: foi restaurada a Monarquia. E o país fica a saber pela internet. A acção foi devidamente filmada e o vídeo será disponibilizado ao final da tarde. É o contributo do 31 para as comemorações do centenário da república.”
Tratou-se, evidentemente, de uma bem sucedida acção de propaganda política – e, também, de publicidade ao blogue, que frequentemente agita as suas ideias com grande imaginação e brilho. De qualquer modo, não é para fazer publicidade aos ideais monárquicos que trago aqui este caso. Trago-o por ele ser uma oportunidade de aprendizagem do funcionamento do nosso mundo institucional. É claro que os autores da façanha sabiam o que estavam a fazer. Quando escreviam no blogue, numa comunicação posterior à acima citada, “Dizem-nos que a bandeira já foi retirada. Durante uma noite e uma manhã houve monarquia em Portugal”, sabiam, claro, que não tinha havido monarquia nenhuma durante aquelas horas que demoraram os serviços camarários a retirar a bandeira que fora de Portugal durante a monarquia. Segundo pude ler num espaço da Causa Monárquica, a acção foi elogiada por D. Duarte de Bragança, que disse estar com ela muito satisfeito. Parece que D. Duarte apenas queria apoiar o facto de a acção “reforçar o sentimento de patriotismo” e contribuir para a “divulgação do que é a história de Portugal”.
Só que, afinal, o que autoriza a pensar que a 5 de Outubro de 1910 a República foi proclamada com o hastear da bandeira naquele sítio e, agora, o hastear da bandeira do Portugal monárquico não restaura a monarquia? É que, quando Pedro e Maria foram casados por aquele sacerdote naquela circunstância, as outras pessoas (as que podiam interferir com esse facto) tinham sido mobilizadas para se comportarem de acordo com essa modificação do estatuto de Maria e Pedro. Se ninguém ligasse nenhuma ao que o padre, o Pedro e a Maria estavam a dizer e a fazer, e toda a gente continuasse a tratá-los como antes, e a ignorar quaisquer tentativas deles para se comportarem de maneira diferente em consequência daquele acto – não haveria casamento algum, como acontecimento dentro da sociedade. Seria como se Pedro e Maria e aquele sacerdote casamenteiro estivessem na cena do casamento no filme de Manoel de Oliveira: acabada a filmagem da cena, ninguém se comportava como se tivesse havido casamento. A 5 de Outubro de 1910 houve implantação da República, condensada naquele hastear da bandeira, não pelo hastear da bandeira como acto isolado, mas pelo vasto conjunto de acções que antecederam esse gesto – e, principalmente, pelos efeitos que teve no comportamento subsequente de milhões de pessoas. Nada disso se passou à volta do hastear da bandeira monárquica a 10 de Agosto de 2009 – e, por isso, não houve monarquia nenhuma durante essas horas.
Em boa verdade, tratou-se apenas de uma acção publicitária. Não chegou, sequer, a ser uma tentativa de falsificar uma restauração da monarquia.»


sexta-feira, 16 de março de 2012

Dos blogs e das almas pequenas

O texto de Paulo Prudêncio é profundamente ilustrativo da 'fase' que este jovem blog está a passar, e que tanto o estimula a crescer.


« Tenho um blogue porque gosto. A coerência não dogmática é um dos lemas que persigo. A defesa do poder democrático da escola, e de outras questões cívicas, desassossega-me a alma, estimula-me a escrita e exige-me, mesmo que raramente, a ultrapassagem do limiar da leveza. Por vezes, vejo-me no centro de um qualquer turbilhão. Como é a consciência que comanda as emoções e racionaliza as decisões, saio mais construído do que quando entro. As coisas pequenas ocupam o lugar da indiferença.

Não me dispo do aconchego aos meus, nem da minha pele, como todos nós. Tomo posições que considero justas, mesmo que não me facilitem a vidinha. Aprecio a responsabilidade individual. Como habito numa Madeira-mesmo-que-de-terceira-divisão, sei com o que posso contar e até me divirto o suficiente. Sei, naturalmente, que muito leitores são locais. Associar os posts ao que se passa no sítio onde resido é um devaneio que me escapa. Já disse mais do que uma vez: tenho mais vida.

Sempre assinei os textos que publiquei nos diversos suportes e nunca escrevi por encomenda. Identifico-me nos comentários que insiro na blogosfera. Este editorial sublinha a minha não militância e independência; não é um estatuto fácil.»

quinta-feira, 15 de março de 2012

A atualidade do projeto pedagógico kantiano

«De um professor espera-se que, nos (...) [alunos], forme, primeiramente, o homem que entende, depois o homem que raciocina e, finalmente, o homem que sabe.» Kant (AK, 305-308)

A filosofia kantiana exprime e fundamenta a mundividência da modernidade; fá-lo, estabelecendo a condição que tornou possível a laicização do pensamento, a que Max Weber virá a chamar a profanização da cultura ocidental. Efetivamente, a Crítica da Razão Pura, publicada em 1781, efetiva uma radical inversão das relações Homem-Deus, tornando-se este um conceito puro, forjado na própria estrutura da razão. Se Deus pode, ou não, ser, para além de ideia (embora necessária), causa ontológica e entidade absoluta, não está no poder da racionalidade finita, que é o Homem, decidi-lo. Estão, assim, lançadas as bases filosóficas que tornarão possível estabelecer o espaço laico em que se move o pensamento atual, nas suas diversas vertentes (científica, política, jurídica, pedagógica).
A importância que o século XVIII deu à pedagogia e à educação do Homem só seria possível sobre esta radical mudança de atitude intelectual. A ideia de Educação ocupa, desde logo, o âmago do projeto Iluminista, no esforço de se libertar de constrangimentos teológicos e de libertar o homem da sua própia menoridade1, consolidando-se, no dizer de Scherer, como uma utopia pedagógica2. As faces desta utopia envolveriam, por um lado, a defesa de uma sociedade pedagógica capaz de exercer funções educativas através de todas as suas instituições, como uma gigantesca escola, por outro, a ideia de uma pedagogia social que possibilitasse ao Homem, na e pela vida em sociedade, o aperfeiçoamento cognitivo, moral e político3.
No Contrato Social, J.J. Rousseau enquadra os ideais pedagógicos do Iluminismo na sua conceção da natureza humana, originariamente boa e suscetível de sofrer, através da socialização, um processo de degeneração e afastamento deste paradigma original4. A proximidade intelectual de Kant ao Iluminismo, que se consolida, sobretudo, através de Rousseau, não isenta, porém, o pensamento kantiano, de significativas divergências e de diferentes contributos para o que viremos a designar, transposto mais de um século, como Filosofia da Educação. De todo o modo, os dois filósofos partem de uma problemática comum - o Homem 'educável' - estabelecendo, mais do que possíveis e diversas soluções, a necessidade de definição do conceito de Educação e de uma séria reflexão neste domínio. É ineludível a atualidade deste intento.
Professor ao longo de quarenta anos da sua vida ativa, é natural que as questões pedagógicas e educativas tenham merecido a atenção de Kant, em mais do que um texto; de facto, estas questões situam-se na confluência das grandes linhas do pensamento kantiano e constituem condição de resposta satisfatória à questão que ele próprio privilegiou pela globalidade filosófica - o que é o Homem?
A ideia de Educação constitui um ponto de partida para abordarmos a conceção kantiana de Homem, pois implica a convicção de que a Humanidade é 'modificável' (ou 'ensinável') na sua estrutura cognitiva, moral e social, a partir de um estádio originário (a natureza), até um estado derivado, um 'progresso' em relação à natureza (a educação ou cultura). Neste domínio, no discurso de Informação aos cursos do Semestre de Inverno de 1765-1766, Kant parte do paradoxo inerente a todo e qualquer intento educativo: o inconveniente de sermos obrigados a antecipar-nos aos anos com a perspetiva orientadora5. Este paradoxo envolve a contradição entre natureza e cultura, que Kant exprime através da oposição entre o processo natural de maturação cognitiva e a exigência de, pelo ensino, se abreviar artificialmente este processo (ou progresso). Vista desta forma, a Educação parte de um pressuposto 'contranatura' que constitui, porém, uma contradição essencial e um paradoxo insanável, cuja dissolução inviabilizaria, em si mesma, o projeto educativo.
A resolução deste paradoxo essencial conduzirá Kant a postular dois aspetos essenciais ao ato educativo em geral: primeiro, que podemos designar, em termos atuais, como a defesa de um plano curricular, advoga a necessidade de colocar as matérias segundo uma ordem de complexidade crescente; segundo, a identificação de um método que permita pôr em prática a progressividade curricular e que o filósofo associa à iniciação filosófica em sentido lato, quando defende que o aluno não deve aprender pensamentos, mas aprender a pensar e que o professor não deve levá-lo, mas guiá-lo, se (...) pretende que, no futuro, ele  seja capaz de caminhar por si mesmo.
Desta forma conseguimos, segundo Kant, uma progressividade no ensino, suscetivel de respeitar o desenvolvimento intelectual do aluno e, simultaneamente, abreviar o processo de maturação intelectual, guiando-o de acordo com o seguinte plano: em primeiro lugar, a experiência, depois o entendimento, que julga os dados da experiência, e, por fim, a razão, que elabora sínteses intelectuais e que se abre ao plano metafísico-moral. Deste modo, como nos adverte o filósofo, mesmo que, como geralmente acontece, o aluno não atinja o mais elevado grau, o intento educativo não é totalmente desperdiçado7.
A Educação segue, portanto, um intento investigativo que inclui a imagem do professor-orientador, que dominará paradigmas bem recentes, e que recupera, simultaneamente, os traços característicos da pedagogia socrática, segundo a qual o ensino não atinge os seus objetivos quando inculca conhecimentos, mas sim quando conduz, o aluno, a extraí-los de si próprio. De acordo com esta metodologia e este desenvolvimento curricular, digamos assim, a Filosofia revela-se a disciplina que realiza a racionalidade, portanto, que constitui o corolário da Educação humana. Deste modo, o homem que sabe e que faz um uso autónomo da Razão será, para Kant, aquele que, através de um projeto pedagógico coerente, concebido nos moldes que acabámos de expôr, viabilizará a Filosofia como o culminar da cultura da razão8 e libertará, assim, o Homem, da sua menoridade.
(recuperação de um texto que escrevi em 1998, publicado na revista Educação, ano II, nº 1, Abril-Maio de 1999)

1- Kant, Resposta à pergunta, o que é o Iluminismo? (1784), Ed. 70, p.11
2- Sherer (1978) Le discour utopique. Paris: U.G.E, pp.376-378
3-Carrilho, M.M: (1987) Razõo e Transmissão da Filosofia, Lisboa: I.N.p. 37
4- Ribeiro dos Santos, L. (1994) A Razão sensível, Lisboa: Ed. Colibri
5 - Kant, Informação acerca dos Cursos do Semestre de Inverno de 1765-67 (AK II, 305-308)
6- ID., IB.
7 - ID., IB.
8 - Kant, (1985).Crítica da Razão Pura, Lisboa, Ed. Gulbenkian. p. 669


segunda-feira, 12 de março de 2012

O MEC e a Parque Escolar: a mentira ao serviço da ideologia

1 - Nuno Crato declarou à Assembleia da República que a auditoria à Parque Escolar, solicitada pelo governo à Inspeção Geral de Finanças (IGF), instituição tida, pelo próprio, como insuspeita, permitia apurar uma «derrapagem de custo por escola intervencionada» de cerca «de 447%».
2 - Esperava, certamente, o MEC, que ninguém se desse ao trabalho de ler o relatório da IGF.
3 - Entre os que leram, encontra-se Daniel Oliveira, ao qual agradecemos os elementos de análise que passamos a identificar:
a)      O desvio médio por escola é, afinal de 66%;
b)   A causa fundamental deste desvio, afirma o relatório, prende-se essencialmente com o «aumento de área de construção por escola»;
c)   Esta, resulta, em grande medida, do alargamento da escolaridade obrigatória, que conduziu à reavaliação ‘por cima’ da população escolar a abranger pelas escolas;
d)   Outro aspeto relevante prende-se com a mudança de legislação comunitária em matéria energética e ambiental, implicando agravamento de custos, nesta área, entre 15% e 25% no total das empreitadas;
d)   Finalmente o relatório elogia a qualidade material das intervenções e afirma que : "Não foram detetadas ilegalidades na adjudicação das empreitadas e na aquisição de bens e serviços abrangidos pela amostra selecionada".
O Ministro Crato não parece tão à vontade com os cálculos numéricos, como seria de esperar em tão insigne matemático. Ao invés, parece bem à vontade na área da psicologia social, e sabe o que significa o ‘efeito de primazia’: é que um número (mesmo ‘mentiroso’) que é lançado primeiro, inscreve-se com mais eficácia na memória de cada um de nós – e, assim, a verdade torna-se socialmente ineficaz (ou mais dificilmente eficaz). É nisso que, estou certa, se fia em mais um episódio de combate à escola pública.
A realidade é que Passos e Crato acham que todo o benefício público, nomeadamente a melhoria das condições de habitabilidade das escolas é um luxo inexplicável, ‘pérolas aos porcos’. A associação entre estes aspectos e a motivação profissional, entre esta e a melhoria da qualidade educativa e a consequente capacidade de atrair os estudantes da classe média, não lhes é desconhecida, antes pelo contrário. Mas corresponde,  exactamente, a tudo quanto o programa ideológico deste governo quer combater.

domingo, 11 de março de 2012

Em torno do «cheque ensino»?

Sabemos que as escolas públicas – seguindo as passadas do país – estão a empobrecer. Refiro-me às condições materiais e pedagógicas que são oferecidas aos alunos. São disso exemplo uma revisão curricular que não decorre de uma abordagem científica (ou, pelo menos, séria) do modelo e finalidades da educação, mas meramente ideológico-financeira, e o aumento do número de alunos por docente (que se anuncia agravado quando se aplicar a cota para a contratação, determinada pelo Ministro das Finanças).
Sob o ponto de vista material, o folhetim Parque Escolar, do qual conhecemos as parangonas mas que dificilmente compreenderemos os reais contornos, é responsável, em muitas escolas, pela paralisação de obras já iniciadas, mantendo professores e alunos num quotidiano de campismo selvagem, sem fim à vista.
Entretanto, tudo vai bem no ensino privado.
Assim que o atual governo tomou posse, enquanto estudava a melhor maneira de nos ‘surpreender’ com impostos extraordinários sobre os subsídios de Natal, preparando uma governança em total negação com as afirmações da campanha eleitoral, o Movimento de Escolas Privadas com Ensino Público Contextualizado (MEPEC) foi, de imediato, satisfeito, sendo-lhe garantido um financiamento até 85 mil euros por turma, pago pelo Estado.
Uns meses depois – os meses do nosso empobrecimento! -, em janeiro, os colégios privados foram alegremente surpreendidos com um financiamento de mais de 12 milhões de euros, a juntar às verbas previstas no OE2012, que nem os próprios sabem, com exatidão, a que se destina.
Paralelamente, os docentes oriundos do ensino privado encontram-se, na proposta do novo modelo de concurso docente, beneficiados em relação ao atual modelo, pois passam a poder concorrer na 1ª prioridade, em condições semelhantes às dos candidatos vindos do ensino público.
Algures, a blogosfera vai-se questionando e questionando se a favorização do ensino privado não visará, de facto, 'musculá-lo' para poder enfrentar as implacáveis lógicas de mercado que a ‘livre escolha da escola’ (vulgo cheque-ensino) proporcionam.
Estas conjeturas fazem-me recordar um artigo esclarecedor, escrito por Nuno Serra no nº 48 da edição portuguesa do Le Monde diplomatique, que não encontro disponível na net, mas do qual deixo, aqui, alguns excertos:
« (...)
Esta ideia, alimenta-se desde logo de uma convicção que se foi instalando gradualmente na sociedade portuguesa, segundo a qual o ensino privado tem uma qualidade manifestamente superior à do ensino público. Sendo certo que há razões que tornam compreensíveis as diferenças observadas (como a tendência para que as escolas privadas sejam de menor dimensão, se organizem em turmas com um menor número de alunos e apresentem um funcionamento orgânico em regra mais consolidado), a realidade está longe de sustentar o modo categórico e abissal com que esta diferença é recorrentemente apresentada.
(...)
 Para que a sua introdução [do cheque-ensino] não comporte um reforço do orçamento do Ministério da Educação, o financiamento da medida teria de ser forçosamente suportado pela redução dos actuais encargos com a rede pública do ensino básico e secundário. E assim sendo, como pretendido, as escolas passariam então a ter que competir pelos alunos, de modo a ver financeiramente assegurado o seu regular funcionamento.
Baseando-se na delimitação geográfica das áreas de influência de cada estabelecimento de ensino, a legislação em vigor obriga, de facto, tendencialmente, a que um aluno apenas se possa inscrever na escola pública da sua área de residência (ou num estabelecimento de ensino situado na proximidade do local de trabalho dos seus pais). Perante estes critérios, que habitam em plenitude um Despacho nesse sentido, do Ministério da Educação, mas que não têm tradução exaustiva na realidade (dado serem bem conhecidos os expedientes a que recorrem as famílias para contornar estas regras), o cheque-ensino representaria – segundo os seus proponentes – uma verdadeira revolução.
De facto, a liberdade de escolha que a medida proporcionaria é-nos apresentada de uma forma tão épica que, por momentos, quase nos esquecemos que a vida das pessoas decorre num quadro espaço-temporal que é, por natureza, relativamente limitado. Isto é, quase nos esquecemos que as escolhas acabam sempre por estar circunscritas às fronteiras do espaço de vida quotidiano (que é físico, mas também social), tornando improvável que um aluno de Carrazeda de Ansiães possa optar por frequentar o melhor colégio de Lisboa, sem que tal implique uma necessária mudança de residência. Ou seja, o cheque-ensino pode, em teoria, ampliar as possibilidades de escolha de um estabelecimento de ensino pelos alunos e suas famílias, mas tal não significa, na prática, uma mudança tão substancial como se pretende fazer crer, face ao que são as reais possibilidades e mecanismos de escolha de que os alunos, actualmente, dispõem.
A este irrealismo no modo como a proposta do cheque-ensino é apresentada junta-se um outro, que arrasta consigo a profunda perversidade da medida. De facto, é legítimo supormos que todos os estudantes, ao estarem munidos do «vale» que o Estado lhes passou a colocar nas mãos (para que, supostamente, exerçam em plenitude o seu direito à liberdade de escolha em matéria de educação), pretendam frequentar o melhor estabelecimento de ensino da sua área de residência. O que implica, naturalmente, que essa escola tenha de proceder a um processo de selecção dos candidatos.
Ora, não é difícil imaginar que os critérios a que presidiria a selecção dos alunos seriam os critérios capazes de assegurar o objectivo de manutenção dessa mesma escola na posição favorável que detém nos rankings (sistema de classificação) de resultados escolares – que são uma espécie de agências de rating (notação) para a educação - , de modo a que não se alterasse o seu potencial de atracção, junto dos potenciais alunos, num quadro reforçado de competição entre todos os estabelecimentos de ensino.
Ou seja, as escolas passariam a escolher os alunos que pudessem manter a sua reputação num nível elevado, de excelência, o que significa que seriam prioritariamente cooptados os estudantes mais promissores, isto é, aqueles que exibem melhores resultados escolares em anos precedentes.
Esta «selecção natural», feita pelas escolas (e não pelos alunos), seria ainda mais expressiva nos estabelecimentos de ensino privado, designadamente nos mais conceituados, pois a probabilidade de os pais dos estudantes que hoje os frequentam não pretenderem assistir à sua invasão, por alunos provenientes de «castas inferiores», seria significativa. Sem surpresa, surgiriam muito provavelmente pressões sobre a direcção destas escolas, para que não fossem aceites alunos com trajectórias escolares menos exuberantes ou, em alternativa, assistir-se-ia a uma tendência para a saída dos melhores alunos para outros estabelecimentos de ensino, caucionando assim a boa posição da escola no ranking de resultados. Ironia das ironias, o cheque-ensino propiciaria deste modo a materialização efectiva dos argumentos de Milton Friedman acerca da desigualdade de poder de influência social sobre os sistemas de educação. (...)»

terça-feira, 6 de março de 2012

Concurso de professores: a mobilidade interna regulamentada

Entre governo e sindicatos, tendo-se autoexcluído a Fenprof, foi assinado o acordo referente às alterações a introduzir no concurso de professores, pelo que podemos já consultar a última versão.
Um dos aspetos mais relevantes prende-se com a regulamentação detalhada da colocação de professores de carreira na mobilidade interna, correspondente ao chamado ‘horário zero’, que dependia, inteiramente, da decisão do diretor, tendo em conta o interesse pedagógico e didático da escola. Agora, verificando-se num grupo de recrutamento a existência de número insuficiente de horas letivas a distribuir, gerando situações em que não é possível atribuir pelo menos 6 horas a um ou mais docentes (art.º 28º),  fica assim (artº 29º, ponto 6):
- O processo de colocação de docente(s) na mobilidade interna continua a ser da responsabilidade do órgão diretor, que avaliará, primeiramente, a existência, ou não, de voluntário(s);
- Caso o número de voluntários exceda a necessidade, o diretor deve indicar para mobilidade, segundo a ordem decrescente da graduação profissional; - Na falta de docentes voluntários, deve o diretor indicar por ordem crescente da graduação profissional. 
Faço minhas as palavras do autor de Correntes:

Alterações ao modelo de gestão e administração : a proposta da ambiguidade ou a democracia rarefeita (3)

Outra ‘novidade’ da alteração ao regime de administração e gestão das escolas públicas (DL 75/2008, de 22/4), prende-se com os departamentos curriculares e respetivos coordenadores. Assim:
- o número de departamentos curriculares passará a variar, de acordo com a realidade das escolas, que passarão a ter autonomia para o determinar (art.º 43º, ponto 3);
- os Coordenadores de departamento deixam de ser nomeados pelo Diretor, tout court, o qual passará a indicar 3 nomes, um dos quais será eleito  pelos docentes (art.º43º, ponto 5).
Estamos perante um fenómeno de hibridismo, quanto ao modelo de legitimação do cargo de Coordenador de departamento.
O DL 75/2008, ao estabelecer o princípio da nomeação, nestes cargos, consolidou a rutura com o padrão de legitimação democrática que se impôs após o 25 de abril de 74, e que constituiu o modelo estrutural e funcional do Conselho Pedagógico (CP); tal aconteceu, quer com regime de administração e gestão das escolas públicas definido pelo DL 769-A/76 (em vigor durante vinte e dois anos), quer com o definido pelo DL 115-A/98 (em vigor durante dez anos). A legitimação dos cargos de eleição encontra-se, precisamente, nos eleitores e acarreta a responsabilidade de representação democrática; durante trinta e dois anos anos os professores escolheram os seus representantes no CP e constituíram, em si mesmos, o garante de legitimidade do cargo. Isto significa que escolhiam (pelo menos, teoricamente) quem, de entre eles, assumia a responsabilidade de levar a sua voz e defender os seus interesses junto dos órgãos de poder e tomada de decisão. O Coordenador de Departamento representava os professores junto do CP e do órgão executivo.
O DL de 2008 inverteu esta lógica (como já vimos aqui e aqui), sem que muitos de nós nos apercebêssemos da dimensão de mudança efetiva de paradigma, que esta pequena reforma acarretava. Tornando-se cargo de nomeação, escolha direta do Diretor, este passou a constituir-se como garante efetivo de legitimação do mesmo, situação radicalizada, ainda, por dois aspetos não despiciendos: primeiro, pelo poder constante do Diretor de, em qualquer momento, exonerar e substituir ( o que inclui, naturalmente, situações de quebra de confiança) e, segundo, o facto do Diretor ser, por inerência, presidente do CP, o que, amplifica as dimensões do poder reunidas na sua  figura e contribui para alguma confusão entre as especificidades da gestão pedagógica e da administração escolar executiva.
Desta forma, desde 2008 que os professores deixaram de ter voz no CP, ao invés, passaram a ter, no respetivo Coordenador de departamento a voz (e, tantas vezes, os olhos…) do Diretor, em regime de proximidade! A inversão consolidou-se: o Coordenador de Departamento passou a ser, junto dos professores, o representante do Diretor.
E de acordo com o modelo agora proposto, quem representa o quê, junto de quem? O Coordenador de departamento passa instalar-se numa zona de legitimidade ambígua – em parte oriunda do Diretor (que o designou, com outros dois candidatos) e, em outra parte, derivada dos colegas que o elegeram (entre os três candidatos que só o foram, porque o Diretor os designou como tal…). Não é invejável, de facto, a posição dos futuros Coordenadores, assim lançados para uma terra de ninguém – ou, melhor, de ‘gente’ a mais, divididos na devoção a dois senhores!
Como contributo a uma inteligibilidade difícil, poderemos ainda aplicar a cadeia Aristotélica das causas e, sendo assim, a 'causa primeira' (a designação do Diretor) evidencia-se como fundamental e necessária, mas não como causa suficiente! E a causa eficiente, teria de ser necessária e suficiente. Estaremos, muito provavelmente, perante um problema de eficiência! Veremos.