quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Aprender a pensar

« Imagine que um dia alguém se aproximava de si na rua e, em vez de lhe perguntar polidamente as horas, ou onde ficava a rua tal, lhe perguntava com a maior naturalidade: importa-se de me dizer se sabe pensar?
Imagine que essa pessoa lhe pedia que a ajudasse a pensar, exatamente com a mesma naturalidade com que lhe pediria lume, ou troco de vinte escudos.»
J. de Sousa Monteiro, Tire a Mão da Boca

Perante esta pergunta - importa-se de me dizer se sabe pensar? – feita num teste de diagnóstico do 10º ano, os meus jovens alunos, na sua maioria, ao invés de encarnarem o espanto, sintoma construtivo da douta ignorância, responderam que ‘claro que sim’, ‘porque não’, ‘estamos sempre a pensar’, ‘como é óbvio’. De forma clara, ninguém aflorou a distinção entre a mera forma espontânea do pensar e a atitude crítica do pensamento, entre o seu fluir circunstancial e a sua capacidade de exercer controlo metodológico sobre o próprio ato de pensar. Ninguém escutou o logos, como diria Heraclito. 
Esta constatação tem-me levado a refletir, não apenas sobre o ensino da filosofia stricto sensu, mas sobre a aprendizagem escolar em geral e, de forma mais vasta, sobre a educação e a sua natureza intrinsecamente filosófica; e, de forma inerente à circularidade desenhada neste raciocínio, se estaremos a cair numa espécie de petição de princípio, onde a conclusão é, ela mesma, premissa (análise que convém ao espírito avisado, mas que deixaremos para mais tarde).
No contexto socrático-platónico não é possível estabelecer uma fronteira nítida entre filosofia e educação. A filosofia grega antiga é, se não o primeiro, se nos recordarmos de Homero-educador, o decisivo capítulo da já longa história do modelo ocidental de educação, como nos ilustra a preciosa obra de Werner Jaeger (Paideia); e esta identidade transporta uma convicção determinada sobre a natureza humana: a de que o homem é, por essência, ‘educável’. Deste modo, a Alegoria da Caverna (Platão), mais do que o cannon geral da tradição filosófica, fornece-nos o paradigma da sociedade educadora. A educação pertence à sociedade (à polis), isto é, constitui uma responsabilidade da comunidade humana organizada e visa ‘converter’ o homem enquanto indivíduo, aos desígnios do todo social; trata-se, portanto, de um problema político, a que o Iluminismo, vários séculos mais tarde, chamará o bem comum. A especificidade da filosofia socrático-platónica reside na imposição do modelo educativo: a razão. Desta forma, há que abandonar as sombras da caverna, geradas pelo modelo de perceção sensível – mas também sentimental, material, egoísta… – e atingir a verdadeira  realidade, deixar para trás as ilusões e ascender ao registo imutável da razão, ‘solar’ por essência. Descartes, no século XVII, retomará o problema educativo ( com o objetivo específico de denunciar as insuficiências da escolástica) segundo a metáfora da viagem interior, fazendo a razão (sob a forma de bom senso), quase náufraga, reencontrar-se como a bússula de toda a construção humana – científica, ética e política.
A filosofia constitui-se como paradigma da educação racional no projeto iluminista kantiano, que se autodefine como a razão autónoma, promovendo a saída, do homem, da menoridade, na qual se manteve prisioneiro (Kant, O que é o Iluminismo?). Entendia Kant que, este preceito, seria suficiente para promover o progresso da sociedade e de cada cidadão, vencendo o obscurantismo. Embora frequentemente citada a sentença kantiano de que se não ensina a filosofia, mas somente a filosofar (pensar), é certo que Kant nunca especificou a natureza metodológica desta pedagogia!
Parece de fácil e rápida assimilação, a convicção das vantagens do pensamento crítico como corolário da educação escolar. Aliás, é esta convicção, de que o pensar crítico e autónomo completa e aperfeiçoa o percurso educativo, que coloca a disciplina de Filosofia na posição curricular de ‘reta final’, no que concerne aos planos curriculares francófonos (que têm inspirado os curricula portugueses): o ‘terminal’ em França e o Ensino Secundário em Portugal. Aparentemente, os curricula escolares têm resolvido o ‘problema’ da potencialidade pedagógica do pensamento crítico da seguinte forma: encerrando-o numa única disciplina – a Filosofia – e deixando aos outros saberes o vasto domínio da aprendizagem reprodutiva. Se tal for verdade, a Filosofia, na escola, faz a diferença. Mas, fará mesmo?

3 comentários:

Anónimo disse...

Embora a Filosofia seja de fundamental importância no exercício da reflexão crítica, essa actividade não pode ficar confinada apenas a essa disciplina. Por isso me insurjo contra um certo entendimento daquilo que hoje se apelida de "saber-fazer", como se o saber-fazer dispensasse o pensar sobre, numa valorização saloia do prático, do útil e do imediato. Por outro lado, pode chamar-se aprendizagem à mera reprodução? O que acontece à reprodução quando a memória (essa traiçoeira!)nos pregar uma "branca"? Mas,como diz quem sabe, vivemos no tempo do efémero. Portanto, "Pois que nada que dure ou que durando/Valha, neste confuso mundo obramos/ .../ O prazer do momento anteponhamos/ À absurda cura do futuro.../. Porém (héllas), "Meu somente é o momento, eu só quem existe/ Neste instante, que pode o derradeiro/ Ser de quem finjo ser?"//

Nelsa

m.f.f. disse...

ATENÇÃO-'lapso' ortográfico: bússola
(a autora)

m.f.f. disse...

Concordamos em absoluto, Nelsa. Mas sabe o mais grave? É que até é possível tornar a Filosofia numa disciplina 'reprodutiva'(e vontades não faltam, de 'cima' e de 'dentro'); ou então, em mero 'folclore', outra chaga que apodrece o ensino, mas que é muito valorizada por alguns (demasiados)diretores, coordenadores, relatores e restantes 'miúdezas'... Entretanto, a escola que abre poucos horizontes é também incapaz de se constituir como verdadeira oportunidade de mobilidade social e fica, ela mesma, como reprodutora passiva de desigualdades de base: económicas, sociais e culturais. Bj
FF