segunda-feira, 8 de abril de 2013

Da «narrativa» como construção ideológica



« (...) porque é que muitos pensadores do nosso mundo pouco pensante se sentiram tão abalados com o uso da palavra “narrativa” por José Sócrates? A pergunta pode ser formulada de modo mais pedagógico: porque é que, quando alguém diz alguma coisa consistente e inteligente, a arte menor da chacota se manifesta com tão acomodada exuberância?
Falo por mim. Ao colocar as narrativas no coração do espaço televisivo, José Sócrates fez mais pela crítica de televisão do que eu, em muitas décadas de prosa, poderia ambicionar. Entenda-se: reconhecer a existência de narrativas (políticas, jornalísticas, etc.) não é o mesmo que chamar “mentiroso” seja a quem for; é antes lembrar que a aproximação da verdade envolve um labirinto de olhares, visões e linguagens em que cada um afirma, mesmo quando o nega, o relativismo do seu posicionamento no mundo. É triste, mas é assim: as lições de Saussure, Freud ou Barthes, ao longo do século XX, não bastaram; precisamos de José Sócrates para nos lembrar que a nossa dimensão humana só o é porque se enraíza na transfiguração do mundo em narrativa(s).
Por uma vez, em televisão, assistimos assim ao consumar de um gesto genuinamente político: alguém que vem dizer que a política não se faz de inquestionáveis transparências, proclamando, tão só: “Eu vejo o mundo assim”. No limite, defendendo o seu direito de expressão, José Sócrates estava também a defender o direito dos outros à elaboração das suas narrativas.»

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