domingo, 11 de março de 2012

Em torno do «cheque ensino»?

Sabemos que as escolas públicas – seguindo as passadas do país – estão a empobrecer. Refiro-me às condições materiais e pedagógicas que são oferecidas aos alunos. São disso exemplo uma revisão curricular que não decorre de uma abordagem científica (ou, pelo menos, séria) do modelo e finalidades da educação, mas meramente ideológico-financeira, e o aumento do número de alunos por docente (que se anuncia agravado quando se aplicar a cota para a contratação, determinada pelo Ministro das Finanças).
Sob o ponto de vista material, o folhetim Parque Escolar, do qual conhecemos as parangonas mas que dificilmente compreenderemos os reais contornos, é responsável, em muitas escolas, pela paralisação de obras já iniciadas, mantendo professores e alunos num quotidiano de campismo selvagem, sem fim à vista.
Entretanto, tudo vai bem no ensino privado.
Assim que o atual governo tomou posse, enquanto estudava a melhor maneira de nos ‘surpreender’ com impostos extraordinários sobre os subsídios de Natal, preparando uma governança em total negação com as afirmações da campanha eleitoral, o Movimento de Escolas Privadas com Ensino Público Contextualizado (MEPEC) foi, de imediato, satisfeito, sendo-lhe garantido um financiamento até 85 mil euros por turma, pago pelo Estado.
Uns meses depois – os meses do nosso empobrecimento! -, em janeiro, os colégios privados foram alegremente surpreendidos com um financiamento de mais de 12 milhões de euros, a juntar às verbas previstas no OE2012, que nem os próprios sabem, com exatidão, a que se destina.
Paralelamente, os docentes oriundos do ensino privado encontram-se, na proposta do novo modelo de concurso docente, beneficiados em relação ao atual modelo, pois passam a poder concorrer na 1ª prioridade, em condições semelhantes às dos candidatos vindos do ensino público.
Algures, a blogosfera vai-se questionando e questionando se a favorização do ensino privado não visará, de facto, 'musculá-lo' para poder enfrentar as implacáveis lógicas de mercado que a ‘livre escolha da escola’ (vulgo cheque-ensino) proporcionam.
Estas conjeturas fazem-me recordar um artigo esclarecedor, escrito por Nuno Serra no nº 48 da edição portuguesa do Le Monde diplomatique, que não encontro disponível na net, mas do qual deixo, aqui, alguns excertos:
« (...)
Esta ideia, alimenta-se desde logo de uma convicção que se foi instalando gradualmente na sociedade portuguesa, segundo a qual o ensino privado tem uma qualidade manifestamente superior à do ensino público. Sendo certo que há razões que tornam compreensíveis as diferenças observadas (como a tendência para que as escolas privadas sejam de menor dimensão, se organizem em turmas com um menor número de alunos e apresentem um funcionamento orgânico em regra mais consolidado), a realidade está longe de sustentar o modo categórico e abissal com que esta diferença é recorrentemente apresentada.
(...)
 Para que a sua introdução [do cheque-ensino] não comporte um reforço do orçamento do Ministério da Educação, o financiamento da medida teria de ser forçosamente suportado pela redução dos actuais encargos com a rede pública do ensino básico e secundário. E assim sendo, como pretendido, as escolas passariam então a ter que competir pelos alunos, de modo a ver financeiramente assegurado o seu regular funcionamento.
Baseando-se na delimitação geográfica das áreas de influência de cada estabelecimento de ensino, a legislação em vigor obriga, de facto, tendencialmente, a que um aluno apenas se possa inscrever na escola pública da sua área de residência (ou num estabelecimento de ensino situado na proximidade do local de trabalho dos seus pais). Perante estes critérios, que habitam em plenitude um Despacho nesse sentido, do Ministério da Educação, mas que não têm tradução exaustiva na realidade (dado serem bem conhecidos os expedientes a que recorrem as famílias para contornar estas regras), o cheque-ensino representaria – segundo os seus proponentes – uma verdadeira revolução.
De facto, a liberdade de escolha que a medida proporcionaria é-nos apresentada de uma forma tão épica que, por momentos, quase nos esquecemos que a vida das pessoas decorre num quadro espaço-temporal que é, por natureza, relativamente limitado. Isto é, quase nos esquecemos que as escolhas acabam sempre por estar circunscritas às fronteiras do espaço de vida quotidiano (que é físico, mas também social), tornando improvável que um aluno de Carrazeda de Ansiães possa optar por frequentar o melhor colégio de Lisboa, sem que tal implique uma necessária mudança de residência. Ou seja, o cheque-ensino pode, em teoria, ampliar as possibilidades de escolha de um estabelecimento de ensino pelos alunos e suas famílias, mas tal não significa, na prática, uma mudança tão substancial como se pretende fazer crer, face ao que são as reais possibilidades e mecanismos de escolha de que os alunos, actualmente, dispõem.
A este irrealismo no modo como a proposta do cheque-ensino é apresentada junta-se um outro, que arrasta consigo a profunda perversidade da medida. De facto, é legítimo supormos que todos os estudantes, ao estarem munidos do «vale» que o Estado lhes passou a colocar nas mãos (para que, supostamente, exerçam em plenitude o seu direito à liberdade de escolha em matéria de educação), pretendam frequentar o melhor estabelecimento de ensino da sua área de residência. O que implica, naturalmente, que essa escola tenha de proceder a um processo de selecção dos candidatos.
Ora, não é difícil imaginar que os critérios a que presidiria a selecção dos alunos seriam os critérios capazes de assegurar o objectivo de manutenção dessa mesma escola na posição favorável que detém nos rankings (sistema de classificação) de resultados escolares – que são uma espécie de agências de rating (notação) para a educação - , de modo a que não se alterasse o seu potencial de atracção, junto dos potenciais alunos, num quadro reforçado de competição entre todos os estabelecimentos de ensino.
Ou seja, as escolas passariam a escolher os alunos que pudessem manter a sua reputação num nível elevado, de excelência, o que significa que seriam prioritariamente cooptados os estudantes mais promissores, isto é, aqueles que exibem melhores resultados escolares em anos precedentes.
Esta «selecção natural», feita pelas escolas (e não pelos alunos), seria ainda mais expressiva nos estabelecimentos de ensino privado, designadamente nos mais conceituados, pois a probabilidade de os pais dos estudantes que hoje os frequentam não pretenderem assistir à sua invasão, por alunos provenientes de «castas inferiores», seria significativa. Sem surpresa, surgiriam muito provavelmente pressões sobre a direcção destas escolas, para que não fossem aceites alunos com trajectórias escolares menos exuberantes ou, em alternativa, assistir-se-ia a uma tendência para a saída dos melhores alunos para outros estabelecimentos de ensino, caucionando assim a boa posição da escola no ranking de resultados. Ironia das ironias, o cheque-ensino propiciaria deste modo a materialização efectiva dos argumentos de Milton Friedman acerca da desigualdade de poder de influência social sobre os sistemas de educação. (...)»

1 comentário:

Colégio em Lisboa disse...

O ensino público está cada vez mais pobre e degradado. O futuro da educação em Portugal está em risco