quinta-feira, 15 de março de 2012

A atualidade do projeto pedagógico kantiano

«De um professor espera-se que, nos (...) [alunos], forme, primeiramente, o homem que entende, depois o homem que raciocina e, finalmente, o homem que sabe.» Kant (AK, 305-308)

A filosofia kantiana exprime e fundamenta a mundividência da modernidade; fá-lo, estabelecendo a condição que tornou possível a laicização do pensamento, a que Max Weber virá a chamar a profanização da cultura ocidental. Efetivamente, a Crítica da Razão Pura, publicada em 1781, efetiva uma radical inversão das relações Homem-Deus, tornando-se este um conceito puro, forjado na própria estrutura da razão. Se Deus pode, ou não, ser, para além de ideia (embora necessária), causa ontológica e entidade absoluta, não está no poder da racionalidade finita, que é o Homem, decidi-lo. Estão, assim, lançadas as bases filosóficas que tornarão possível estabelecer o espaço laico em que se move o pensamento atual, nas suas diversas vertentes (científica, política, jurídica, pedagógica).
A importância que o século XVIII deu à pedagogia e à educação do Homem só seria possível sobre esta radical mudança de atitude intelectual. A ideia de Educação ocupa, desde logo, o âmago do projeto Iluminista, no esforço de se libertar de constrangimentos teológicos e de libertar o homem da sua própia menoridade1, consolidando-se, no dizer de Scherer, como uma utopia pedagógica2. As faces desta utopia envolveriam, por um lado, a defesa de uma sociedade pedagógica capaz de exercer funções educativas através de todas as suas instituições, como uma gigantesca escola, por outro, a ideia de uma pedagogia social que possibilitasse ao Homem, na e pela vida em sociedade, o aperfeiçoamento cognitivo, moral e político3.
No Contrato Social, J.J. Rousseau enquadra os ideais pedagógicos do Iluminismo na sua conceção da natureza humana, originariamente boa e suscetível de sofrer, através da socialização, um processo de degeneração e afastamento deste paradigma original4. A proximidade intelectual de Kant ao Iluminismo, que se consolida, sobretudo, através de Rousseau, não isenta, porém, o pensamento kantiano, de significativas divergências e de diferentes contributos para o que viremos a designar, transposto mais de um século, como Filosofia da Educação. De todo o modo, os dois filósofos partem de uma problemática comum - o Homem 'educável' - estabelecendo, mais do que possíveis e diversas soluções, a necessidade de definição do conceito de Educação e de uma séria reflexão neste domínio. É ineludível a atualidade deste intento.
Professor ao longo de quarenta anos da sua vida ativa, é natural que as questões pedagógicas e educativas tenham merecido a atenção de Kant, em mais do que um texto; de facto, estas questões situam-se na confluência das grandes linhas do pensamento kantiano e constituem condição de resposta satisfatória à questão que ele próprio privilegiou pela globalidade filosófica - o que é o Homem?
A ideia de Educação constitui um ponto de partida para abordarmos a conceção kantiana de Homem, pois implica a convicção de que a Humanidade é 'modificável' (ou 'ensinável') na sua estrutura cognitiva, moral e social, a partir de um estádio originário (a natureza), até um estado derivado, um 'progresso' em relação à natureza (a educação ou cultura). Neste domínio, no discurso de Informação aos cursos do Semestre de Inverno de 1765-1766, Kant parte do paradoxo inerente a todo e qualquer intento educativo: o inconveniente de sermos obrigados a antecipar-nos aos anos com a perspetiva orientadora5. Este paradoxo envolve a contradição entre natureza e cultura, que Kant exprime através da oposição entre o processo natural de maturação cognitiva e a exigência de, pelo ensino, se abreviar artificialmente este processo (ou progresso). Vista desta forma, a Educação parte de um pressuposto 'contranatura' que constitui, porém, uma contradição essencial e um paradoxo insanável, cuja dissolução inviabilizaria, em si mesma, o projeto educativo.
A resolução deste paradoxo essencial conduzirá Kant a postular dois aspetos essenciais ao ato educativo em geral: primeiro, que podemos designar, em termos atuais, como a defesa de um plano curricular, advoga a necessidade de colocar as matérias segundo uma ordem de complexidade crescente; segundo, a identificação de um método que permita pôr em prática a progressividade curricular e que o filósofo associa à iniciação filosófica em sentido lato, quando defende que o aluno não deve aprender pensamentos, mas aprender a pensar e que o professor não deve levá-lo, mas guiá-lo, se (...) pretende que, no futuro, ele  seja capaz de caminhar por si mesmo.
Desta forma conseguimos, segundo Kant, uma progressividade no ensino, suscetivel de respeitar o desenvolvimento intelectual do aluno e, simultaneamente, abreviar o processo de maturação intelectual, guiando-o de acordo com o seguinte plano: em primeiro lugar, a experiência, depois o entendimento, que julga os dados da experiência, e, por fim, a razão, que elabora sínteses intelectuais e que se abre ao plano metafísico-moral. Deste modo, como nos adverte o filósofo, mesmo que, como geralmente acontece, o aluno não atinja o mais elevado grau, o intento educativo não é totalmente desperdiçado7.
A Educação segue, portanto, um intento investigativo que inclui a imagem do professor-orientador, que dominará paradigmas bem recentes, e que recupera, simultaneamente, os traços característicos da pedagogia socrática, segundo a qual o ensino não atinge os seus objetivos quando inculca conhecimentos, mas sim quando conduz, o aluno, a extraí-los de si próprio. De acordo com esta metodologia e este desenvolvimento curricular, digamos assim, a Filosofia revela-se a disciplina que realiza a racionalidade, portanto, que constitui o corolário da Educação humana. Deste modo, o homem que sabe e que faz um uso autónomo da Razão será, para Kant, aquele que, através de um projeto pedagógico coerente, concebido nos moldes que acabámos de expôr, viabilizará a Filosofia como o culminar da cultura da razão8 e libertará, assim, o Homem, da sua menoridade.
(recuperação de um texto que escrevi em 1998, publicado na revista Educação, ano II, nº 1, Abril-Maio de 1999)

1- Kant, Resposta à pergunta, o que é o Iluminismo? (1784), Ed. 70, p.11
2- Sherer (1978) Le discour utopique. Paris: U.G.E, pp.376-378
3-Carrilho, M.M: (1987) Razõo e Transmissão da Filosofia, Lisboa: I.N.p. 37
4- Ribeiro dos Santos, L. (1994) A Razão sensível, Lisboa: Ed. Colibri
5 - Kant, Informação acerca dos Cursos do Semestre de Inverno de 1765-67 (AK II, 305-308)
6- ID., IB.
7 - ID., IB.
8 - Kant, (1985).Crítica da Razão Pura, Lisboa, Ed. Gulbenkian. p. 669


1 comentário:

logosfera disse...

as bases do ensino actual remontam ao pós revolução francesa, veja-se também Condorcet, as bases do ensino público começam aí.linquei o vosso blog na logosfera e copiei o texto da Nassbaum.Este assunto já foi abordado, este é um bom contributo. Obrigada.