segunda-feira, 26 de março de 2012

« Histórias difíceis de contar »

No passado sábado, dia 24, decorreu o lançamento do livro da minha colega e amiga Sandra Nóbrega. A mim, coube-me a sua apresentação. Com o consentimento da autora, aqui deixo a divulgação da obra e a transcrição (quase fiel) da minha intervenção.


Foi com alegria que recebi, da parte da autora, Sandra Nóbrega, o convite para estar aqui hoje a apresentar, e cito a própria, 'a autora e o livro'.
O facto de ser um tarefa grata não significa, porém, que seja fácil. E não é fácil, em nenhuma das suas dimensões.
Não sei se será mais difícil apresentar a autora se o livro, «Histórias difíceis de contar», mas decidi trocar a ordem dos fatores e começar pelo LIVRO (que, provavelmente, nos facilitará a apresentação da autora).

Numa prosa fluida e despretensiosa, que dispensa artefactos e complicações estilísticas, optando por deixar passar a mensagem, portanto, numa prosa que se transforma no espelho do quotidiano vivido – são-nos oferecidas vinte histórias de vida, ‘difíceis’ de contar.
Difíceis, desde logo, porque penetram a face oculta do quotidiano, aquela que, em geral, por fragilidade e comodismo, optamos por não ‘ver’ e por ‘silenciar’. Quando este livro opta por ‘trazer à tona’ o que se esconde e habita as margens da vida, é a nós todos, aos leitores e pessoas comuns, que interpela de forma irresistível:
Estas histórias não se passam no terceiro mundo nem noutro país. São nossas! São histórias que estão mais perto de si do que imagina, muitas vezes, à distância de um passo, de um olhar perdido ou de um rosto cabisbaixo(pág 14).

Trata-se, portanto, de um livro sobre a fragilidade humana:
em primeiro lugar, a dos pequenos ‘heróis’, sobreviventes do abandono, da miséria, do abuso e da crueldade social. Sandra Nóbrega põe a nú, a partir do enfoque nos mais frágeis, nos mais jovens e carentes de proteção, o fenómeno do ciclo reprodutivo da pobreza e da sua implacável herança geracional – uma cadeia de causas e efeitos que envolve as gerações precedentes. Põe a nú as dimensões polifacetadas da pobreza: que não é só falta de ‘dinheiro’, nem mesmo de bens básicos, de higiene… e tantos outros; é também e de forma implacável, a pobreza social e moral. E a nú, finalmente, interpelando-nos a nós, leitores, de forma irredutível: a nossa fragilidade de espetadores mudos e, tantas vezes, indiferentes.

Vem a propósito recordar, neste mês de abril, vinte e quatro anos passados sobre a data em que foi assassinado, a frase de Martin Luther King, que numa antinomia quiçá demasiado simplificada (entre os bons e os maus), interpela a nossa consciência muda, revelando-nos as cumplicidades:
O que me preocupa não é o grito dos maus. É o silêncio dos bons.”
Martin Luther King

Desta forma, Sandra Nóbrega faz desfilar, perante o leitor, a incómoda galeria do mundo real: da adolescente que se prostitui ao pequenos irmãos sujeitos a grave negligência e abuso, por parte da própria mãe, o espelho da pobreza multifacetada.
As histórias são narradas a partir de uma ideia central e autojustificada: os ‘direitos das crianças e dos jovens’ e da responsabilidade social partilhada que este conceito encerra e exige.
Porém, percorrendo estas histórias e reforçando-lhes a unidade temática, uma personagem-narradora faz o contraponto: a professora. É assumindo a subjetividade da narradora como ‘filtro’, que as histórias são contadas: as histórias que a professora viveu e testemunhou diretamente e, outras, que lhe foram contadas por colegas de profissão. É a professora que vê e não cala, que assume a sua profissão, não apenas como ‘funcionária’, mas, por assim dizer, como ‘missionária’ – responsável de uma missão junto dos jovens. Este sentido de missão social e moral descreve a diferença entre o professor que somente ‘ensina a matéria’ (o ‘instrutor’, diria eu) e o que educa e forma – o verdadeiro educador. Neste sentido, o livro de Sandra Nóbrega é, ao mesmo tempo de um apelo à consciencialização da missão social e moral da ‘docência’, uma homenagem a tantos professores-educadores que têm feito a diferença na vida de crianças e jovens e particularmente, quando a história destas crianças e jovens não se resume ao percurso dito ‘normal’, mas é, em sentido próprio, uma história 'difícil de contar’.

E porque falamos na missão social dos professores, e porque a dignidade desta missão jamais é isenta de responsabilidade, cabe aos professores, de forma privilegiada e por força da sua profissão, testemunhar, cabe-lhes denunciar:
Denunciar é um dever que todos temos em prol da proteção das nossas crianças e jovens!
Porque o tempo das nossas crianças e jovens é Agora, é urgente ver, ouvir e não calar! (Pag 14)

Para concluirmos esta análise, não poderei deixar de lado um pequeno apontamento sobre a estrutura metodológica e estilística do livro.
As narrativas constituem, hoje, mais do que um estilo literário. Hoje fala-se, como metodologia validada, em termos de investigação no âmbito das ciências sociais e humanas, em metodologia narrativa. As ‘histórias de vida’ são uma modalidade particular da investigação narrativa. Nas vinte histórias de vida, que compõem o livro de Sandra Nóbrega, encontramos as categorias essenciais desta metodologia narrativa, tais como:
- validar a subjetividade como instrumento de compreensão dos fenómenos sociais (ou socio-morais);
- compreender os fenómenos enquanto ação (em ambos os casos, ultrapassando os paradigmas quantitativos e positivistas, que apenas captam o fenómeno enquanto resultado, negligenciando-o como processo);
- evidenciar a categoria da temporalidade como revelador de sentido(s);
- estruturar a narrativa a partir do enredo ou viragem da ação;
- culminar numa reflexão de tendência generalizante: um‘coda’ ou moral da ‘história’, a lição que dela é retirada pelo sujeito intemporal, que encarna os valores que se situam 'para além' do campo restrito da ação, mas que decorrem dela.
Na realidada vários autores, oriundos da sociologia, da literatura e da filosofia da linguagem, como é o caso de Polkinghorne e Paul Ricouer, evidenciaram o caráter cognitivo da narrativa, como sendo o modo ‘natural’ como todos os sujeitos  atribuibuem sentido à diversidade das suas experiências, numa espécie de ‘escrita’ psico-lógica, em tudo semelhante à ficção literária: enredo, ação, sequencialidade .  
Acerca de «Histórias difíceis de contar» não me alongarei mais, esperando que os leitores me perdoem por tudo quanto mais deveria ter assinalado, mas que deixo à descoberta da vossa leitura.
Sobre Sandra Nóbrega, a autora, há a dizer tudo quanto se descobriu – no verdadeiro sentido de desvendar – na obra.
Mas há algo mais. Que se prende, ainda e também, com o binómio o silêncio e a voz, que orientou a nossa exposição do livro.
Sandra é a voz. Caracteriza-se, como bem sabem aqueles que com ela privam, por ser a voz, a palavra. Nestes tempos que são também de crise de voz: uma crise que começou por ser financeira e logo se tornou económica, depois política e de cidadania; uma crise de participação, de envolvimento e de compromisso coletivo. Hoje, somos convidados, em todas as múltiplas formas que o poder exibe - esse Leviatã, para evocarmos a monstruosa imagem usada por Thomas Hobbes, no século XVII - ao individualismo e ao silêncio, a tratar cada um da sua vidinha e nisso se esgotar.
Na generalidade, aceitamos. E no silêncio cúmplice nos esgotamos.
Sandra não aceita, não hipoteca o seu direito à voz. Tão incómodo!
Sandra é o discurso que se assume. Que denuncia a injustiça.
Que enfrenta. Olhos nos olhos.
Que não cede à esmagadora tentação de fingir que não vê (tão eficaz para não vermos, de facto).
Que não é indiferente.
Que procura a luz. Pôr na luz. Que procura a lucidez em vez do individualismo penumbrento.
Que incomoda. Que prefere o turbilhão às águas paradas, mortas, podres.
Que ensina. Que mostra o caminho, a mão, a orientação.
Que por vezes não cede.
Que prefere a lealdade, a honra e os valores. Que testemunha e não cala.
Alguém que enriquece vidas. As ‘difíceis’ e as menos difíceis de contar.

4 comentários:

MollyThousandSmiles disse...

Serei então a primeira a comentar.

Por mais que escreva, jamais conseguirei descrever o que provocaste com esta intervenção da mesma forma que não consigo descrever a honra e o privilégio que sinto pela forma como preparaste com profissionalismo, rigor e cientificidade o livro.
És muito especial amiga e um ser humano de exceção como muito poucos que conhecço.

Muito grata
Sandra Nóbrega

Isabel Abril disse...

Gostaria de adquirir o livro, pode-me informar onde está á venda ?Obrigada

Josmael Bardour disse...

Pode ser comprado via internet na WOOK da Porto Editora.

MollyThousandSmiles disse...

Olá isabel!

eu sou a autora do livro e creio que a Isabel trabalha no agrupamento de escolas do Montijo :-)

De facto o livro está à venda on line mas ao preço da capa acrescem as despesas de envio. Se quiser eu levo-lhe o livro pessoalmente.

Obrigada
:-)

Sandra Nóbrega