A democracia, regime político inventado pelos gregos, na antiguidade, está associada ao período áureo de riqueza e poder de Atenas (séc. V a C): governo do ‘demo’, que não é propriamente o ‘povo’ no conceito alargado que temos hoje; trata-se de cidadãos livres (não escravos), de maior idade, naturais de Atenas (não estrangeiros nem filhos de estrangeiros) e de sexo masculino (não mulheres). Ainda faltavam muitos séculos para se aflorar a noção de direitos humanos universais, mas construiu-se, com inegável sucesso, uma experiência política inovadora, uma espécie de ‘engenharia social’ que ultrapassou as conceções que reproduziam as brutalidades tribais, as tiranias militares e outras experiências mais próximas da nossa animalidade. Enfim: cargos públicos e governo da ‘polis’(cidade) acessível ao cidadão, independentemente da fortuna pessoal e em concordância com o seu mérito.
A democracia constrói, assim, uma nova fonte de poder, até então desconhecida e mais associada a videntes e poetas ambulantes: o poder da palavra, do ‘logos’, organização lógica do discurso, que impõe, ao caos da experiência, a construção racional.
Na realidade, esta descoberta avassaladora que associa, na política, retórica (e não, necessariamente, verdade) e poder, constrói, para o bem e para o mal, a essência da democracia enquanto regime político. Transporta, de uma forma não menos essencial, uma imagem do homem muito próxima da que os sofistas fizeram triunfar na Ágora e na Assembleia Popular ateniense – o homem, medida de todas as coisas, educado, cosmopolita, persuasivo e manipulador.
É precisamente esta imagem de homem que Sócrates, o Moscardo de Atenas, se preocupará em ridicularizar, através do que a história da filosofia designará de ‘ironia’ socrática; quer dizer que o Moscardo ‘picava’ os poderosos e que lhes sugeria um ‘conhece-te a ti mesmo’ humilhante das capacidades de quem se arvorava em verdadeiro ‘conhecedor’.
Ora, quem se mete com o poder – e que outra coisa será a política? – ou possui influência que o proteja (que é um poder informal, mas muitíssimo eficaz, que nem sempre pode identificar claramente os seus circuitos) ou tem vocação para mártir.
E assim, a história da filosofia ocidental inicia-se, comme il faut, com um martírio (a morte de Sócrates, condenado a beber a cicuta) e com uma tocante história de amor (a lealdade de Platão, ao seu mestre injustiçado).
Platão gastará o resto da sua vida a impor a tradição literária da filosofia, a partir de duas ideias-chave: a reabilitação de Sócrates, o ‘filósofo’, ou melhor, a própria Filosofia, a partir de então; e uma visceral oposição ao regime democrático, último responsável, em seu entender, pelo assassinato daquele que foi «o mais excelente, e o mais sensato e o mais justo» dos atenienses (Platão, Fédon). Este segundo vetor domina uma das suas obras da maturidade, Politeia (traduzido como A República), na qual valoriza o papel da educação na formação do homem e associa o poder político ao conhecimento (à ascese intelectual-filosófica), como forma de fugir ao governo do vulgo, da ignorância, em que, segundo ele, a democracia se transformou. Uma cidade justa será, pois, aquela cujo ‘rei’ é ‘filósofo’.
Na realidade, com o declínio do poderio de Atenas (que acaba por ser vencida pelo exército espartano) após a Guerra do Peloponeso (431-404 a.C.) e um surto de peste que dizimou um terço da sua população, a democracia é abandonada e mesmo amaldiçoada, como regime político, durante muitos séculos.
É ao Iluminismo e ao liberalismo, durante os séculos XVIII e XIX, que se deve o ressurgir da ideia (positiva) de Democracia.
1 comentário:
Já me tinham dito que o Platão era anti-democrático, mas ~só agora percebi a ligação co a sua filosofia. tanks.
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