sábado, 26 de novembro de 2011

Participação e eficácia ou o CG da escola ‘X’

No colóquio «Políticas públicas de educação» promovido pelo Fórum Português de Administração Educacional, a que assisti hoje, António Teodoro, um dos participantes de uma mesa-redonda, diagnosticava os novos tempos educativos como ‘tempos de pulsão autoritária’ ou, na expressão de Boaventura Sousa Santos, uma (nova) ‘democracia de baixa intensidade’. Abordou o paradoxo atual, aceite como evidência pelo senso comum, segundo o qual a ‘participação’ (axioma básico da democracia’) é incompatível com a ‘eficácia’ (palavra-chave da educação orientada pelos resultados). Daqui que se postule a ideia e se ensaie a prática de mais participação democrática=menos resultados.
Este princípio consubstancia-se no novo modelo de gestão das escolas públicas, nomeadamente quando se passa a conceber as chefias intermédias como os longos ‘tentáculos’ do diretor, sendo este a figura da sua legitimação, ao invés da representação entre pares que o modelo de eleição garantiu durante trinta e tal anos. E procedeu-se a essa inversão a partir de crenças ideológicas puras, de inspiração neoliberal (como disse Teodoro) ou gerencialista (como prefere Licínio Lima), e não a partir de um estudo empírico sério e validado, que comprovasse que o modelo de eleição fosse gerador de cruciais dificuldades de gestão; deste modo, o Conselho Pedagógico das escolas tornou-se reunião de fiéis em uníssono, desprezando a diversa coloração de vozes, pelas quais os docentes se faziam representar e ouvir.
Com um Conselho Pedagógico mudo (e, se convier, também cego), negação efetiva da colegialidade autêntica enquanto participação nos processos de decisão, resta-nos o Conselho Geral (CG) – apresentado no texto legal (DL 75/2008, Preâmbulo) como forma de garantir condições de participação a todos os interessados. É o caso dos representantes eleitos dos professores, do pessoal não docente, dos Pais e Encarregados de Educação e dos alunos. Mas será que as escolas traduzem este (exíguo, já) reduto democrático nas suas práticas concretas?
Imaginemos, como puro exercício, a escola ’X’ e o seu CG. Imaginemos que, como na esmagadora maioria das organizações escolares, o seu presidente é um dos representantes docentes. Imaginemos que é chegado o momento de realizar a eleição dos representantes dos Pais e EE, cujos mandatos são de dois anos (DL. 75/2008), desde que os regulamentos Internos (RI) não disponham em contrário.
Imaginemos, por puro exercício ainda, que o RI determina que, para a Assembleia Eleitoral de Pais e EE, deverá ser enviada convocatória a todos os EE contendo, por força da aplicação de CPA, a respetiva ordem de trabalhos e materiais explicativos, e imaginemos que o determina precisamente nestes termos. Imaginemos finalmente que, dada uma alegada contenção de gastos, o Presidente do CG se limita a afixar a convocatória para a Assembleia Eleitoral (realmente ou virtualmente, e, neste último caso, sem disponibilizar os tais materiais informativos). A Assembleia Eleitoral realizar-se-á, por força desta ideologia de desmobilização, contando com uma participação equivalente a cerca de 0,5%  do universo dos interessados.
Posta a situação fictícia, retiremos ilações reais.
O Presidente do CG cumpriu o RI? Não. Porque enviar e afixar não são sinónimos (como se comprovará pela consulta de um qualquer dicionário banal da língua portuguesa); e porque o sinal democrático de acolhimento que enviou foi, para retomarmos a expressão do sociólogo acima referido, de ‘baixa intensidade’; ainda porque a percentagem de participação confirma a anomalia do processo. Para já não falarmos das possibilidades de enviar sem custos financeiros acrescidos, ao alcance de todas as escolas, desde que devidamente planificada e atempadamente desenvolvida.
Qual a gravidade deste ato de ‘fingir que se cumpre’? Muita. Em primeiro lugar porque desrespeita o RI, normativo que implementa as condições do exercício da autonomia na escola e que consolida o consenso de uma comunidade educativa alargada que o votou e onde estão representados os diferentes interesses. Em segundo lugar, o presidente do CG desrespeitou-se a si mesmo, figura que simboliza a dignidade intrínseca do órgão, assim traída pelo próprio. Em terceiro lugar, e de forma mais gravosa, desrespeitou o Pais e EE da sua escola a quem (de forma deliberada ou não) impediu o acesso autêntico aos processos democráticos de representação, substituindo-o por uma ‘performance’ muito mitigada.
Qual a probabilidade dos restantes membros do CG rejeitarem uma situação que, de forma tão clara, renega a natureza do CG como órgão de representatividade democrática? Pouca. Porquê? Dada a interiorização patológica da incompatibilidade entre o princípio da participação democrática e o da eficácia? Em grande medida. Porque há um lobby de Pais (escolhidos a dedo) que temem a excessiva abertura a outras sensibilidades, quiçá menos permeáveis à sua agenda de interesses? Muito provavelmente.
Esta é, naturalmente e para nossa tranquilidade, uma história ficcionada. Mas, ainda assim, possível numa paleta de possibilidades razoavelmente variada.

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Imagens do filósofo (algumas reflexões complementares à aula de hoje, na Universidade Sénior)

A minha tese é simples: um filósofo não é um profeta e o seu caminho não é errância. Essa imagem, a meu ver, perverte a filosofia na sua missão essencial que não é a simples sapiência – a própria designação de filo-sofia, procura da sabedoria, recusa-se como pura e simples posse e afirma-se como busca, inquietação pelo saber.
O especulativo incompreendido (e ridículo), que declama das nuvens ou para as nuvens (como o Sócrates de Aristófanes, na comédia As nuvens) pertence, de facto, ao anedotário filosófico e transporta um conteúdo determinado – e, apesar de tudo, adequado; adequa-se ao filósofo como ‘ser das alturas’, ao ideal ascético veiculado a partir de Platão. Gilles Deleuze (Logique du Sens) identifica, neste ‘psiquismo ascensional’, a associação platónica entre moral e filosofia; a simbologia filosófica abandona, assim, a investigação das profundezas, da terra, da matéria, como fora desígnio de muitos dos pré-socráticos (os Milésios, por exemplo) que faziam filosofia ‘com as mãos’, para se instalar no céu inteligível e aí ficar.
Mas Gilles Deleuze, na senda de Nietzsche, não deixa de ser injusto na sua radical condenação (muito judaico-cristã!) do platonismo! Mesmo o filósofo platónico fica mal instalado no seu trono de inteligibilidade, porque a filosofia é ativa e processual. Tal como ‘o libertado’ da caverna (Platão, Alegoria da Caverna) que regressa para junto dos seus companheiros, assumindo o seu compromisso político, o filósofo ou é do mundo, ou não é filósofo; quer isto dizer que a filosofia digna desse nome é consciente da sua missão transformadora em relação ao mundo do homem comum e à sociedade. Desta forma, o filósofo é aquele que pensa o mundo, mas não só. Procura transformá-lo, integrando-se na categoria dos que agem e fazem ouvir a sua voz. De outra forma limitar-se-ia a pregar no deserto ou  pendurar-se-ia das nuvens, assumindo-se como caricatura e imagem de comédia.
Ao contrário da ‘in-diferença’ ao mundo e aos seus diversos acontecimentos (todos os acontecimentos, de facto), a filosofia ensina-nos a fazer a diferença. Abre, assim, o caminho para um modo de pensar que é, sobretudo, uma maneira de viver e agir.

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Em busca da sabedoria

João Carlos Silva, filósofo, professor de filosofia e amigo pessoal, em entrevista a «Livros e Leituras», fala-nos do seu percurso intelectual e dos seus livros: os que possui, os que gosta, os que leu, os que escreveu e publicou, os que escreveu  e pretende publicar.


quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Aprender a pensar

« Imagine que um dia alguém se aproximava de si na rua e, em vez de lhe perguntar polidamente as horas, ou onde ficava a rua tal, lhe perguntava com a maior naturalidade: importa-se de me dizer se sabe pensar?
Imagine que essa pessoa lhe pedia que a ajudasse a pensar, exatamente com a mesma naturalidade com que lhe pediria lume, ou troco de vinte escudos.»
J. de Sousa Monteiro, Tire a Mão da Boca

Perante esta pergunta - importa-se de me dizer se sabe pensar? – feita num teste de diagnóstico do 10º ano, os meus jovens alunos, na sua maioria, ao invés de encarnarem o espanto, sintoma construtivo da douta ignorância, responderam que ‘claro que sim’, ‘porque não’, ‘estamos sempre a pensar’, ‘como é óbvio’. De forma clara, ninguém aflorou a distinção entre a mera forma espontânea do pensar e a atitude crítica do pensamento, entre o seu fluir circunstancial e a sua capacidade de exercer controlo metodológico sobre o próprio ato de pensar. Ninguém escutou o logos, como diria Heraclito. 
Esta constatação tem-me levado a refletir, não apenas sobre o ensino da filosofia stricto sensu, mas sobre a aprendizagem escolar em geral e, de forma mais vasta, sobre a educação e a sua natureza intrinsecamente filosófica; e, de forma inerente à circularidade desenhada neste raciocínio, se estaremos a cair numa espécie de petição de princípio, onde a conclusão é, ela mesma, premissa (análise que convém ao espírito avisado, mas que deixaremos para mais tarde).
No contexto socrático-platónico não é possível estabelecer uma fronteira nítida entre filosofia e educação. A filosofia grega antiga é, se não o primeiro, se nos recordarmos de Homero-educador, o decisivo capítulo da já longa história do modelo ocidental de educação, como nos ilustra a preciosa obra de Werner Jaeger (Paideia); e esta identidade transporta uma convicção determinada sobre a natureza humana: a de que o homem é, por essência, ‘educável’. Deste modo, a Alegoria da Caverna (Platão), mais do que o cannon geral da tradição filosófica, fornece-nos o paradigma da sociedade educadora. A educação pertence à sociedade (à polis), isto é, constitui uma responsabilidade da comunidade humana organizada e visa ‘converter’ o homem enquanto indivíduo, aos desígnios do todo social; trata-se, portanto, de um problema político, a que o Iluminismo, vários séculos mais tarde, chamará o bem comum. A especificidade da filosofia socrático-platónica reside na imposição do modelo educativo: a razão. Desta forma, há que abandonar as sombras da caverna, geradas pelo modelo de perceção sensível – mas também sentimental, material, egoísta… – e atingir a verdadeira  realidade, deixar para trás as ilusões e ascender ao registo imutável da razão, ‘solar’ por essência. Descartes, no século XVII, retomará o problema educativo ( com o objetivo específico de denunciar as insuficiências da escolástica) segundo a metáfora da viagem interior, fazendo a razão (sob a forma de bom senso), quase náufraga, reencontrar-se como a bússula de toda a construção humana – científica, ética e política.
A filosofia constitui-se como paradigma da educação racional no projeto iluminista kantiano, que se autodefine como a razão autónoma, promovendo a saída, do homem, da menoridade, na qual se manteve prisioneiro (Kant, O que é o Iluminismo?). Entendia Kant que, este preceito, seria suficiente para promover o progresso da sociedade e de cada cidadão, vencendo o obscurantismo. Embora frequentemente citada a sentença kantiano de que se não ensina a filosofia, mas somente a filosofar (pensar), é certo que Kant nunca especificou a natureza metodológica desta pedagogia!
Parece de fácil e rápida assimilação, a convicção das vantagens do pensamento crítico como corolário da educação escolar. Aliás, é esta convicção, de que o pensar crítico e autónomo completa e aperfeiçoa o percurso educativo, que coloca a disciplina de Filosofia na posição curricular de ‘reta final’, no que concerne aos planos curriculares francófonos (que têm inspirado os curricula portugueses): o ‘terminal’ em França e o Ensino Secundário em Portugal. Aparentemente, os curricula escolares têm resolvido o ‘problema’ da potencialidade pedagógica do pensamento crítico da seguinte forma: encerrando-o numa única disciplina – a Filosofia – e deixando aos outros saberes o vasto domínio da aprendizagem reprodutiva. Se tal for verdade, a Filosofia, na escola, faz a diferença. Mas, fará mesmo?

domingo, 16 de outubro de 2011

Ainda a ‘liderança’ nas escolas

No contexto da governação escolar aos vários níveis – gestão de topo e intermédias, vulgo diretores e coordenadores de departamento – as virtudes da liderança partilhada eram já focadas, há mais de 50 anos, por John Dewey. Apesar do atual contexto de administração escolar, onde a representatividade democrática dos professores foi amplamente reduzida, restam alguns caminhos de participação ativa (nomeadamente ao nível dos Conselhos Gerais) que têm de ser, urgentemente, levados a sério.
Na realidade, os professores são um corpo profissional de elite, em termos de habilitações académicas e profissionais, somente equiparáveis a grupos profissionais como médicos e juízes, por exemplo. Porém, os índices da sua  participação cívica na interior das organizações educativas a que pertencem – sinal de profissionalidade responsável, informação, reconhecimento da missão educativa e de autonomia – são demasiado baixos. Baldridge identifica quatro tipos de atores políticos nas escolas (referenciado por Stephan Ball, no livro Micropolítica da escola, escrito nos anos 80): funcionários, ativistas, pessoas alerta e apáticos. Os funcionários são, por definição, politicamente envolvidos, em função da sua carreira, estilo de vida e ideologia, uma vez que assumem tarefas de direção da organização; os diretores das escolas estão neste grupo. Os ativistas são um pequeno contingente de atores implicados na política escolar e educativa, como os delegados sindicais ou os simplesmente ‘influentes’, por exemplo; participam, quer formal quer informalmente, no sentido de influenciar as decisões. As pessoas alerta tendem a participar apenas quando há problemas muito delicados, uma vez que, embora acompanhem a maioria dos processos, o fazem à distância e não querem comprometer-se; constituem o grupo mais numeroso, mas também o mais responsável pelo excesso de comodismo e conformismo que periga a democracia interna das escolas. Os apáticos não demonstram interesse em participar; colocam-se à margem por razões várias e a sua não participação pode ser estratégica, nomeadamente sob o ponto de vista pessoal.
A classificação de Baldridge é-nos tão familiar, que ficamos constrangidos. Apetece perguntar aos colegas docentes ( a nós mesmos): a que nível se situa? É um dos apáticos? Ou será daquelas pessoas a que o alerta chega tarde de mais?
É que, no contexto de uma crescente autonomia que, pelo menos aparentemente, é consensualmente reivindicada, a liderança colegial é inerente à ideia de colegialidade profissional. Somente deste modo podem, os professores, impor a excelência da sua formação e a importância do seu papel social dentro e fora da escola. Fátima Sanches, num artigo sobre a liderança colegial das escolas, considera-a uma dupla oportunidade (para as escolas e para os professores),  indissociável dos objetivos pós-modernos de melhoria e eficácia dos sistemas educativos, que tem lugar em algumas margens organizacionais do trabalho do professor, mas que urge deslocar para o centro da vida quotidiana da escola.

domingo, 9 de outubro de 2011

Escola e Democracia (IV) – o que quer dizer ’liderança’?

Na última década, como corolário do léxico modernizador de inspiração liberal, foram penetrando vários termos no linguajar educativo; um deles é a ‘liderança’. Foi, precisamente, em nome da necessidade de promover ‘lideranças fortes’ que o 75/2008 alterou, de forma radical, o processo de eleição dos Diretores e a estrutura dos órgãos de direção escolar, substituindo o poder executivo colegial da nossa tradição democrática, por um órgão unipessoal.
Sem dúvida que o órgão unipessoal acrescentou, em relação aos (antigos) presidentes do Conselho Executivo, uma dimensão simbólica (e também real) de poder absoluto, que não passou despercebida aos candidatos mais inclinados para os títulos e a pose.
Porém, estudos empíricos disponíveis, permitem-nos perceber que, nos dez anos de vigência do paradigma de administração escolar colegial (estruturado pelo DL 115-A/98), se produziram, de facto, fenómenos de liderança e ‘lideranças fortes’. Ao invés, no presente (e estão em curso vários estudos nesta área), alguns Diretores/as, por detrás do ‘título e da pose’, mantêm-se burocratas cinzentos, repetitivos, sem imaginação, sem carisma, nem qualquer traço que se aproxime da dita liderança, nem suspeitando o que a dita seja.
Quando se valoriza a liderança e o papel do líder na escola (pensando-se, à partida, que se trata do/a Diretor/a, dado possuir a autoridade formal), está-se a conceber a escola como uma organização política. Ora, uma organização política é uma rede de interações onde a autoridade, o poder, a influência e a liderança, se jogam num tabuleiro, cujo xadrez exige perceção estratégica - aquilo a que vulgarmente chamamos ‘inteligência’. O que torna o jogo muitíssimo mais complexo e, digamos ‘subterrâneo’; é precisamente sobre o conceito de ‘jogo’ que Crozier e Friedman desenvolvem uma nova e importante sociologia da ação organizada.
A problemática da liderança, nas escolas, encontra-se associada à sua função pedagógica, o que recorda a defesa, não apenas de uma necessária liderança pedagógica, mas da ‘liderança como pedagogia (Sergiovanni). Ora, como vemos, o desafio da liderança mostra-se, no contexto escolar, particularmente complexo e desafiante.
Quando nos confrontamos com situações concretas, no terreno, percebemos que a liderança estratégica (e não há outra) envolve menos a autoridade formal e mais as capacidades de interação micropolítica associadas à persuasão, à resolução de problemas, à interação pessoal eficaz, à influência, ao carisma pessoal. O que, nem sempre, se encontra em quem detém a autoridade formal-burocrática.
É caso para perguntar aos colegas docentes: e na tua escola, há algum/a líder?

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Escola e Democracia (III) – considerações acerca da ‘autonomia’

Duas noções complexas e muito distantes da univocidade  são subordinadas à ação dos Conselhos Gerais, pelo Regime de administração e gestão das escolas públicas (DL 75/2008): liderança e autonomia. Caberia, aqui, uma (muito) breve reflexão sobre ambas; comecemos pela autonomia, pois que a liderança depende, em grande medida, do que dela se entende.
Quando iniciei a minha carreira como professora, nos idos de 80, com a Lei de Bases do Sistema Educativo na ordem do dia (lei que seria aprovada por unanimidade pela Assembleia da República, em 1986), esboçavam-se os seus primeiros desenhos conceptuais, os quais não lograram concretização, engrossando uma retórica autonomista que foi traçando um caminho difuso, e que englobava ideias muito distintas, quer sob o plano ideológico, quer funcional, num verdadeiro ‘saco de gatos’ de todas as cores.
De facto, poucas ou nenhumas têm sido as vozes que ousam, até aos dias de hoje, questionar a bondade intrínseca da autonomia das organizações educativas, embora cada uma a conceba sob luz distinta, ou mesmo contraditória. Não tendo, ainda, havido real vontade política para o confronto com a realidade, que seria a implementação de um modelo (concreto) de autonomia, encontra-se favorecida a ambiguidade.  Foi, desta forma, surgindo uma terminologia avulsa de importação anglo-saxónica, associada à retórica autonomista – Regulamentos Internos, Projetos Educativos, Lideranças, etc. – e enxertada com maior ou menor sucesso na máquina fortemente centralista e burocrática (de estrutura francófona) que foi e é o nosso sistema educativo, nomeadamente a partir da publicação de um incipiente regime jurídico da autonomia, em 1989 (DL 43/89).
A ideal possibilidade de concretização da autonomia conduziu, de facto, à implementação, não da própria, mas de uma política (muito contestada) de Agrupamentos de escolas, apresentada como a racionalização necessária da rede educativa nacional, condição de possibilidade da almejada autonomia. Pelo meio, foram vendo a luz do dia, em aberta contradição entre o que se diz e o que se faz, realidades orgânicas de inspiração (re)centralizadora, como as DRE’s (em vias de extinção) e os CAE (já, felizmente, extintos). Assim se reforçou a centralização do poder central a partir de serviços locais burocráticos, que integraram os boys de algumas famílias políticas e asseguraram estratégias de controlo remoto (Lima, 1999).
A questão crucial é que a ‘autonomia’, seja lá aquilo que for, não é, seguramente, um mero reajustamento técnico-instrumental e orgânico dos ‘braços’ do sistema educativo, à mercê de uma única ‘cabeça’, a administração central; a autonomia efetiva da escola é uma descentralização política que transforma as escolas em  centros de decisão educativa – em termos pedagógicos, curriculares e de gestão de recursos humanos, passando pelos poderes de contratação de pessoal docente.
Ora, o DL 75/2008, ao invés do que expressamente declara, torna a autonomia mais utópica e longínqua. Desde logo porque, reduzindo consideravelmente as estruturas internas de participação democrática (nomeadamente ao nível do Conselho Pedagógico), desbarata importantes recursos de gestão, pois os professores são, como afirma Lima (2011),   

importantes decisores cuja ação exige  considerável grau de autonomia sobre os objetivos, o currículo, a gestão didática, os métodos pedagógicos, a avaliação, etc. A sua autoridade profissional e ético-política exige margens de liberdade (pois a autoridade sem liberdade resulta em autoritarismo) e encontra-se também muito dependente da capacidade de decidir autonomamente, individual e coletivamente, e de assumir as respetivas responsabilidades. Como sustentava Paulo Freire, toda a educação evidencia características de diretividade e politicidade, uma vez que não existe educação neutra e sem objetivos, exigindo por isso dos professores não apenas decisões pedagógico-didáticas, em sentido restrito, mas também opções de política educativa.

Neste novo modelo (DL 75/2008) não encontramos, de facto, uma opção pela ‘autonomia’ como política educativa, mas sim e apenas, por instrumentos de autonomia: a autonomia constitui não um valor abstrato ou um valor absoluto, mas um valor instrumental (Preâmbulo, sublinhado nosso).
Ora, estes instrumentos são colocados, na sua totalidade, sob o controlo do Conselho Geral, o que nos torna mais perturbadoras as (imagináveis) possibilidades de este órgão poder corromper a independência da sua missão, seja por via de simples inércia, de compadrios corporativos ou de domínio político-partidário externo.

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Platão e a Democracia (aos meus jovens alunos de 10º ano)

A democracia, regime político inventado pelos gregos, na antiguidade, está associada ao período áureo de riqueza e poder de Atenas (séc. V a C): governo do ‘demo’, que não é propriamente o ‘povo’ no conceito alargado que temos hoje; trata-se de cidadãos livres (não escravos), de maior idade, naturais de Atenas (não estrangeiros nem filhos de estrangeiros) e de sexo masculino (não mulheres). Ainda faltavam muitos séculos para se aflorar a noção de direitos humanos universais, mas construiu-se, com inegável sucesso, uma experiência política inovadora, uma espécie de ‘engenharia social’ que ultrapassou as conceções que reproduziam as brutalidades tribais, as tiranias militares e outras experiências mais próximas da nossa animalidade. Enfim: cargos públicos e governo da ‘polis’(cidade) acessível ao cidadão, independentemente da fortuna pessoal e em concordância com o seu mérito.
A democracia constrói, assim, uma nova fonte de poder, até então desconhecida e mais associada a videntes e poetas ambulantes: o poder da palavra, do ‘logos’, organização lógica do discurso, que impõe, ao caos da experiência, a construção racional.
Na realidade, esta descoberta avassaladora que associa, na política, retórica (e não, necessariamente, verdade) e poder, constrói, para o bem e para o mal, a essência da democracia enquanto regime político. Transporta, de uma forma não menos essencial, uma imagem do homem muito próxima da que os sofistas fizeram triunfar na Ágora e na Assembleia Popular ateniense – o homem, medida de todas as coisas, educado, cosmopolita, persuasivo e manipulador.
É precisamente esta imagem de homem que Sócrates, o Moscardo de Atenas, se preocupará em ridicularizar, através do que a história da filosofia designará de ‘ironia’ socrática; quer dizer que o Moscardo ‘picava’ os poderosos e que lhes sugeria um ‘conhece-te a ti mesmo’ humilhante das capacidades de quem se arvorava em verdadeiro ‘conhecedor’.
Ora, quem se mete com o poder – e que outra coisa será a política? – ou possui influência que o proteja (que é um poder informal, mas muitíssimo eficaz, que nem sempre pode identificar claramente os seus circuitos) ou tem vocação para mártir.
E assim, a história da filosofia ocidental inicia-se, comme il faut, com um martírio (a morte de Sócrates, condenado a beber a cicuta) e com uma tocante história de amor (a lealdade de Platão, ao seu mestre injustiçado).
Platão gastará o resto da sua vida a impor a tradição literária da filosofia, a partir de duas ideias-chave: a reabilitação de Sócrates, o ‘filósofo’, ou melhor, a própria Filosofia, a partir de então; e uma visceral oposição ao regime democrático, último responsável, em seu entender, pelo assassinato daquele que foi «o mais excelente, e o mais sensato e o mais justo» dos atenienses (Platão, Fédon). Este segundo vetor domina uma das suas obras da maturidade, Politeia (traduzido como A República), na qual valoriza o papel da educação na formação do homem e associa o poder político ao conhecimento (à ascese intelectual-filosófica), como forma de fugir ao governo do vulgo, da ignorância, em que, segundo ele, a democracia se transformou. Uma cidade justa será, pois, aquela cujo ‘rei’ é ‘filósofo’.
Na realidade, com o declínio do poderio de Atenas (que acaba por ser vencida pelo exército espartano) após a Guerra do Peloponeso (431-404 a.C.) e um surto de peste que dizimou um terço da sua população, a democracia é abandonada e mesmo amaldiçoada, como regime político, durante muitos séculos.
É ao Iluminismo e ao liberalismo, durante os séculos XVIII e XIX, que se deve o ressurgir da ideia (positiva) de Democracia.

sábado, 24 de setembro de 2011

Em torno da ideia de «decadência» (I)

Em 1871 Antero de Quental, poeta e filósofo considerava que a decadência dos povos peninsulares (leia-se ibéricos) era uma evidência incontestável.
Depois de um périplo em torno das grandezas passadas, identifica a crescente decadência dos séculos XVII, XVIII e XIX: um quadro de abatimento e insignificância, tanto mais sensível quanto contrasta dolorosamente com a grandeza, a importância e a originalidade do papel que desempenhámos (…).
São três as causas do nosso colapso moral (que arrasta todos os outos):

Quais as causas dessa decadência, tão visível, tão universal, e geralmente tão pouco explicada? Examinemos os fenómenos que se deram na Península durante o decurso do século XVI, período de transição entre a Idade Média e os tempos modernos, e em que aparecem os gérmenes, bons e maus, que mais tarde, desenvolvendo-se nas sociedades modernas, deram a cada qual o seu verdadeiro carácter. (…)
Ora esses fenómenos capitais são três, e de três espécies: um moral, outro político, outro económico. O primeiro é a transformação do catolicismo, pelo Concílio de Trento. O segundo, o estabelecimento do absolutismo, pela ruína das liberdades locais. O terceiro, o desenvolvimento das conquistas longínquas. Estes fenómenos assim agrupados, compreendendo os três grandes aspectos da vida social, o pensamento, a política e o trabalho, indicam-nos claramente que uma profunda e universal revolução se operou, durante o século XVI, nas sociedades peninsulares. Essa revolução foi funesta, funestíssima. Se fosse necessária uma contraprova, bastava considerarmos um facto contemporâneo muito simples: esses três fenómenos eram exactamente o oposto dos três factos capitais, que se davam nas nações que lá fora cresciam, se moralizavam, se faziam inteligentes, ricas, poderosas, e tomavam a dianteira da civilização. Aqueles três factos civilizadores foram a liberdade moral, conquistada pela Reforma ou pela filosofia: a elevação da classe média, instrumento do progresso nas sociedades modernas, e directora dos reis, até ao dia em que os destronou: a indústria, finalmente, verdadeiro fundamento do mundo actual, que veio dar às nações uma concepção nova do Direito, substituindo o trabalho à força, e o comércio à guerra de conquista.
(…) Assim, enquanto as outras nações subiam, nós baixávamos. Subiam elas pelas virtudes modernas; nós descíamos pelos vícios antigos, concentrados, levados ao sumo grau de desenvolvimento e aplicação. (…)
Causas da Decadência dos Povos Peninsulares nos últimos três séculos, discurso proferido por Antero de Quental, numa sala do Casino Lisbonense, em Lisboa, no dia 27 de Maio de 1871

Escola e Democracia (II)

O Conselho Geral das escolas públicas (e agrupamentos de escolas) apresenta um desenho inovador, se comparado com o órgão que o precedeu, no anterior quadro legislativo, a Assembleia de Escola, onde, não obstante estarem representados diferentes membros da comunidade, os professores detinham, só por si, uma maioria absoluta de representantes. O DL 75/2008 justifica tal opção como forma de garantir condições de participação a todos os interessados, [pelo que] nenhum dos corpos ou grupos representados tem, por si mesmo, a maioria dos lugares (Preâmbulo).
Deixemos, por hora, a contextualização dos restantes corpos de representantes e foquemo-nos nos professores.
Os representantes dos professores são eleitos mediante a apresentação de listas; possuem a legitimidade da representação democrática num órgão em que preenchem, necessariamente, um número percentual inferior a 50%, conjuntamente com os representantes do pessoal não docente (podem, no máximo, chegar a 8 elementos, em 21).
A representatividade democrática docente não se reproduz nos Conselhos Pedagógicos (CP), que são compostos quase exclusivamente (e, nalgumas escolas, exclusivamente) por elementos nomeados pelo Diretor/a.  
A voz dos professores mal penetra os CP. Os nomeados, como a sua essência indica são, na realidade, ‘instrumentos’; e se se tornarem incómodos, poderão ser exonerados pelo Diretor/a, como a lei prevê.
E os Conselhos Gerais? Será que os docentes que os integram, eleitos entre pares, têm consciência da sua função como último reduto da democracia interna? Levam às reuniões as legítimas aspirações, receios, propostas… dos colegas que representam? Ouvem-nos? Divulgam o teor dos assuntos tratados nas reuniões? Mantêm independência em relação à direção executiva?
É que, se assim não for – o que é comum em muitos estabelecimentos de ensino – não resta um laivo de organização democrática nas escolas, elas tornam-se espaços autoritários, tiranias, prisões psíquicas. E a acontecer tal, a responsabilidade é dos próprios professores.
Gostaria de perguntar aos colegas docentes:
Como vai o Conselho Geral da tua escola? Como trabalha?
Quantos teriam resposta?

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Escola e Democracia (I)

O novo Regime de Administração e Gestão das Escolas Públicas (DL nº 75/2008, de 22/4) promove alterações profundas no paradigma de administração escolar, em vigor depois de 1974 - considerado o regime de gestão democrática das escolas. Desde logo, altera o modelo de legitimação do poder executivo, que deixa de ser de natureza colegial (os conselhos diretivos e executivos) e deixa de ter uma forte legitimidade eleitoral (Afonso, 2009), do tipo corporativo, como até então, dado que os anteriores presidentes (do conselhos directivos ou executivos) eram eleitos diretamente pelos colegas docentes da sua escola. Trata-se de uma viragem, que troca a concepção democrática pela conceção gestionária de inspiração gerencialista e tecnocrática.O novo modelo de administração (ver Preâmbulo do DL) visa, explicitamente, três objectivos estratégicos: primeiro, reforçar a participação das famílias e promover a abertura das escolas ao exterior e a sua integração nas comunidades locais; segundo, reforçar as lideranças das escolas; terceiro, reforçar a autonomia. Associa-se (ou subordina-se?) a liderança e a autonomia à abertura da escola ao controlo social externo.Estes objetivos confluem na introdução do controlo social nas escolas, numa lógica de prestação de contas (accountability) face às famílias e comunidades locais. O instrumento fundamental deste controlo social é o Conselho Geral a quem os Diretores têm de prestar contas. Pelo menos, teoricamente.
Por seu lado, os Diretores dominam as práticas gestionárias e pedagógicas internas, cabendo-lhes um centralismo quase absoluto: nomeiam as chefias intermédias (os Coordenadores de Departamento, obrigatoriamente) e controlam todos os procedimentos, anulando completamente a tradição de democracia interna em vigor até 2008; na realidade, os coordenadores deixaram de ser os representantes dos professores, legitimados pelo seu voto: os 'primus inter pares'. São. agora, os representantes do Diretor junto dos professores, numa lógica inversa que alterou completamente o clima social das escolas.
Que vantagens e desvantagens oferece esta inversão?

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

A Europa dos cafés

« A Europa é feita de cafetarias, de cafés. Estes vão da cafetaria preferida de Pessoa, em Lisboa, aos cafés de Odessa frequentados pelos gangsters de Isaac Babel. Vao dos cafés de Copenhaga, onde Kierkegaard passava nos seus passeios concentrados, aos balcões de Palermo. Não há cafés antigos ou definidores em Moscovo, que já é um subúrbio da Ásia. Poucos em Inglaterra, após um breve período em que estiveram na moda, no século XVIII. Nenhuns na América do Norte, para lá do posto avançado galicano de Nova Orleães. Desenhe-se o mapa das cafetarias e obter-se-á um dos marcadores essenciais da 'ideia de Europa'.
O café é um local de entrevistas e conspirações, de debates intelectuais e mexericos, para o flâneur e o poeta ou metafísico debruçado sobre o bloco de apontamentos. Aberto a todos, é todavia um clube, uma franco-maçonaria de reconhecimento político ou artístico-literário e presença pragmática. Uma chávena de café, um copo de vinho, um chá com rum assegura um local onde trabalhar, sonhar, jogar xadrez ou simplesmente permanecer aquecido durantetodo o dia. É o clube dos espirituosos e a poste-restante dos sem-abrigo. Na Milão de Stendhal, na Venezade Casanova, na Paris de Baudelaire, o café albergava o que existia de oposição política, de liberalismo clandestino. Três cafés principais da Viena imperial e entre as guerras forneceram a agora, o locus da eloquência e da rivalidade, a escolas adversárias de estética e economia política, de psicanálise e filosofia. Quem desejasse conhecer Freud ou Karl Kraus, Musil ou Carnap, sabia precisamente em que café procurar, a que Stammtish tomar lugar.»
George Steiner, A Ideia de Europa

O patriotismo lúcido de Junqueiro

Sobre os portugueses:
«Um povo imbecilizado e resignado, humilde e macambúzio, fatalista e sonâmbulo, burro de carga, besta de nora, aguentando pauladas, sacos de vergonhas, feixes de misérias, sem uma rebelião, um mostrar de dentes, a energia dum coice, pois que nem já com as orelhas é capaz de sacudir as moscas...»Guerra Junqueiro, «Pátria», 1896