Duas noções complexas e muito distantes da univocidade são subordinadas à ação dos Conselhos Gerais, pelo Regime de administração e gestão das escolas públicas (DL 75/2008): liderança e autonomia. Caberia, aqui, uma (muito) breve reflexão sobre ambas; comecemos pela autonomia, pois que a liderança depende, em grande medida, do que dela se entende.
Quando iniciei a minha carreira como professora, nos idos de 80, com a Lei de Bases do Sistema Educativo na ordem do dia (lei que seria aprovada por unanimidade pela Assembleia da República, em 1986), esboçavam-se os seus primeiros desenhos conceptuais, os quais não lograram concretização, engrossando uma retórica autonomista que foi traçando um caminho difuso, e que englobava ideias muito distintas, quer sob o plano ideológico, quer funcional, num verdadeiro ‘saco de gatos’ de todas as cores.
De facto, poucas ou nenhumas têm sido as vozes que ousam, até aos dias de hoje, questionar a bondade intrínseca da autonomia das organizações educativas, embora cada uma a conceba sob luz distinta, ou mesmo contraditória. Não tendo, ainda, havido real vontade política para o confronto com a realidade, que seria a implementação de um modelo (concreto) de autonomia, encontra-se favorecida a ambiguidade. Foi, desta forma, surgindo uma terminologia avulsa de importação anglo-saxónica, associada à retórica autonomista – Regulamentos Internos, Projetos Educativos, Lideranças, etc. – e enxertada com maior ou menor sucesso na máquina fortemente centralista e burocrática (de estrutura francófona) que foi e é o nosso sistema educativo, nomeadamente a partir da publicação de um incipiente regime jurídico da autonomia, em 1989 (DL 43/89).
A ideal possibilidade de concretização da autonomia conduziu, de facto, à implementação, não da própria, mas de uma política (muito contestada) de Agrupamentos de escolas, apresentada como a racionalização necessária da rede educativa nacional, condição de possibilidade da almejada autonomia. Pelo meio, foram vendo a luz do dia, em aberta contradição entre o que se diz e o que se faz, realidades orgânicas de inspiração (re)centralizadora, como as DRE’s (em vias de extinção) e os CAE (já, felizmente, extintos). Assim se reforçou a centralização do poder central a partir de serviços locais burocráticos, que integraram os boys de algumas famílias políticas e asseguraram estratégias de controlo remoto (Lima, 1999).
A questão crucial é que a ‘autonomia’, seja lá aquilo que for, não é, seguramente, um mero reajustamento técnico-instrumental e orgânico dos ‘braços’ do sistema educativo, à mercê de uma única ‘cabeça’, a administração central; a autonomia efetiva da escola é uma descentralização política que transforma as escolas em centros de decisão educativa – em termos pedagógicos, curriculares e de gestão de recursos humanos, passando pelos poderes de contratação de pessoal docente.
Ora, o DL 75/2008, ao invés do que expressamente declara, torna a autonomia mais utópica e longínqua. Desde logo porque, reduzindo consideravelmente as estruturas internas de participação democrática (nomeadamente ao nível do Conselho Pedagógico), desbarata importantes recursos de gestão, pois os professores são, como afirma Lima (2011),
importantes decisores cuja ação exige considerável grau de autonomia sobre os objetivos, o currículo, a gestão didática, os métodos pedagógicos, a avaliação, etc. A sua autoridade profissional e ético-política exige margens de liberdade (pois a autoridade sem liberdade resulta em autoritarismo) e encontra-se também muito dependente da capacidade de decidir autonomamente, individual e coletivamente, e de assumir as respetivas responsabilidades. Como sustentava Paulo Freire, toda a educação evidencia características de diretividade e politicidade, uma vez que não existe educação neutra e sem objetivos, exigindo por isso dos professores não apenas decisões pedagógico-didáticas, em sentido restrito, mas também opções de política educativa.
Neste novo modelo (DL 75/2008) não encontramos, de facto, uma opção pela ‘autonomia’ como política educativa, mas sim e apenas, por instrumentos de autonomia: a autonomia constitui não um valor abstrato ou um valor absoluto, mas um valor instrumental (Preâmbulo, sublinhado nosso).
Ora, estes instrumentos são colocados, na sua totalidade, sob o controlo do Conselho Geral, o que nos torna mais perturbadoras as (imagináveis) possibilidades de este órgão poder corromper a independência da sua missão, seja por via de simples inércia, de compadrios corporativos ou de domínio político-partidário externo.